I ciclo de entrevistas online da APPSIG – Professor Doutor João Matos

"Há uma vantagem decisiva e óbvia na utilização de SIG e que deriva do facto de a generalidade das coisas serem georreferenciáveis", afirma João Matos - licenciado em Engenharia Geográfica e Doutorado em Engenharia do Território (em 1998, pela Universidade Técnica de Lisboa), tendo mais de 30 anos de experiência profissional com atividade de consultoria, de ensino e investigação e atividade empresarial.

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1. Como caracteriza o atual estado dos SIG em Portugal?
Penso que há 20 ou 30 anos atrás esta questão seria mais relevante do que agora. A evolução tecnológica e a disponibilidade de dados trouxeram-nos a um ponto de utilização generalizada da informação geográfica, ou seja, se é possível com um telemóvel procurar uma loja no mapa e escolher o melhor caminho para lá chegar, então já se está num nível que era ficção científica geográfica há não muito tempo. O que está a acontecer no domínio da informação geográfica não é específico de um país, mas sim uma tendência global.

Já não estou a acompanhar de perto os desenvolvimentos em Portugal, mas posso, no entanto, apontar algumas coisas isoladas que observei diretamente. É um facto que temos empresas com vitalidade e uma forte competência no desenvolvimento de aplicações de base geográfica, ou seja, há um bom domínio da base tecnológica e capacidade para inovar e evoluir. Pode também constatar-se que nas atividades com incidência sobre o território a utilização de SIG é generalizada, ainda que com níveis de sofisticação diversos. Essa efetiva utilização corrente e em múltiplos sectores é um bom indicador do sucesso. Ainda assim, gostaria de ver mais aplicação de inteligência geográfica, mais análise e um melhor entendimento da modelação geográfica.

Do lado da administração pública há um sinal positivo que é o de finalmente se ter alterado a regulamentação da cartografia para assimilar o conceito de conjuntos de dados geográficos e de produto geográfico, em vez perpetuar a ideia de série cartográfica como base de uma estratégia nacional. Por um lado, é gratificante que normas que ajudei a desenvolver no âmbito da ISO tenham agora sido adotadas indiretamente via INSPIRE, por outro lado é de lamentar o tempo e recursos que se perderam numa estratégia mal fundamentada à partida.

2. O que acha que pode ser feito, institucionalmente e individualmente para aumentar a visibilidade dos SIG na sociedade?
Penso que a visibilidade surge naturalmente por via da utilização corrente de informação geográfica. Na década de 90 havia um esforço “evangelizador” para a utilização de SIG, na altura fazia sentido porque tinha de haver um investimento coletivo para se alcançar algo que fosse real e permitisse uma utilização efetiva. Hoje, para além de existir muito melhor tecnologia e mais dados, já há sensibilidade em relação aos benefícios, do ponto de vista institucional público e privado. Um sinal da importância dada aos SIG é o dinamismo que existe no desenvolvimento de uma infraestrutura geográfica nacional, traduzindo o reconhecimento da importância do investimento em dados de interesse público. Julgo também que um grande número de organizações, públicas e privadas, estão conscientes das vantagens que decorrem de gerir os seus recursos com base em informação geográfica. Poderão não se realizar alguns desenvolvimentos por existirem outras prioridades na aplicação do dinheiro, mas não será por falta de visibilidade.

3. O que destacaria como “a vantagem competitiva dos SIG”?
Há uma vantagem decisiva e óbvia na utilização de SIG e que deriva do facto de a generalidade das coisas serem georreferenciáveis. Reconhecendo essa natureza intrínseca que dá a utilidade à informação geográfica há que considerar também as limitações e, além disso, que a competitividade vem de uma construção de negócio com um resultado, tangível ou intangível, positivo.

Nalguns casos a análise é fácil, por exemplo, uma companhia de eletricidade pode gastar muito num sistema de informação geográfica porque isso é compensado com economias na manutenção da rede, na adequação do projeto de novos elementos e nas multas que não paga por falhas no serviço. Uma operadora de entregas de pacotes ao domicílio pode ter benefício em adotar um sistema de otimização de rotas de entrega, mas pode também fazer a avaliação e constatar que isso não compensa face ao custo da informação e do sistema. Noutros casos de aplicação é difícil demonstrar a existência de um benefício. Ao longo destes quase 30 anos de atividade vi, e também fiz, projetos SIG a que faltava a demonstração de validade do “negócio” e a demonstração da vantagem da solução proposta, coisa que um mapa colorido, por si só, não dá. Posso dar dois exemplos que me apareceram recentemente, relativos ao trabalho feito em duas excelentes teses de mestrado em SIG, já antigas, mas cuja aplicação surgiu muitos anos depois de terem sido escritas. Numa tese, era feita uma caracterização do território de Timor-Leste em função da adequação para culturas agrícolas, acabou por ser incorporada num Plano Nacional de Ordenamento do Território apresentado talvez 15 anos depois da tese e que, se for implementado, só terá a sua vantagem demonstrada talvez 20 anos depois e mesmo assim a avaliação do benefício pode ser inconclusiva. No segundo caso, foi desenvolvida uma metodologia para o desenho ótimo de corredores viários em função de custo de construção e população servida. Desse algoritmo surgiu uma proposta interessante para desviar o trânsito que atravessava a capital, tão interessante como inesperada, e que efetivamente veio a ser construída cerca de 15 anos depois (duvido que com base no trabalho da tese, que deste modo foi assim validada).

Por vezes as vantagens de um sistema são óbvias, mas não é tão óbvio como se pode viabilizá-lo. Na implementação do conceito de “smart cities”, por exemplo, um dos problemas de ter cidades monitorizadas com inúmeros sensores é o custo de produção e a manutenção desses sensores. Tendo isso em conta, é ainda preciso que efetivamente se possa retirar benefício dessa informação e conseguir quantificar esse benefício. Dentro da mesma linha, o “crowd sensing”, que é uma ideia que muito aprecio, pode funcionar bem nalguns contextos, mas, perante uma grande exigência de fiabilidade e de consistência de serviço, pode não conseguir afirmar-se como uma boa solução.

Em suma, é preciso que o benefício compense de algum modo o custo da informação e que isso seja demonstrado. Isso implica, entre outras coisas, uma construção de especificações (passei muito tempo a trabalhar em especificações e métodos para ajudar ao seu desenvolvimento) e a conceção de indicadores que possam demonstrar quão boa é uma solução.

4. Fale-nos da sua experiência no âmbito dos SIG e de que forma o ajudou a cumprir com eventuais objetivos.
Eu comecei por fazer a licenciatura em Engenharia Geográfica, orientado para geodesia e astronomia, fiz uma formação em deteção remota em 1988 e tive o meu primeiro e muito frustrante contacto com software de SIG em 1989, naquele tempo as coisas simplesmente não funcionavam. Penso que em 1993 comecei a dar formação em SIG e depois em 1994 iniciei uma empresa na área de SIG, que mantive em paralelo com a atividade académica. O facto de me ter iniciado com a experiência de empresa foi determinante, era preciso aprender e intervir em muitas áreas diferentes ( SIG, CAD, MDT, GPS, fotogrametria e deteção remota) e isso deu-me uma base técnica muito versátil, potenciada pela necessidade de aprender as necessidades dos clientes e a obrigação de ter coisas a funcionar. Com a dificuldade em conciliar as duas atividades optei pela carreira académica que estava a ter uma evolução muito interessante. Comecei a trabalhar no IST na altura em que foi criado o curso de Engenharia do Território e depois estive ativo na criação do curso de mestrado em SIG do qual fui posteriormente coordenador. Vale a pena referir que este mestrado foi criado por iniciativa do Eng. Rui Gonçalves Henriques, então diretor do CNIG, e coordenado pelo Prof. João Bento, para suprir a necessidade de técnicos – principalmente de entidades públicas – com formação adequada em SIG.

Fizeram-se nesse grupo no IST inúmeros projetos interessantes, a equipa tinha um espírito fantástico e gente talentosa, desenvolvia-se teoria, software, casos de aplicação e teses de grande qualidade, numa dinâmica em que estive envolvido até 2008. Realizámos uma série de projetos em Portugal, mas acabou por ser marcante a experiência em Timor-Leste que começou no apoio a um Plano Estratégico e estendeu-se à criação de uma infraestrutura geográfica nacional, uma rede geodésica, estudos de aptidão agrícola, riscos de cheia, desenho de corredores viários, limites administrativos, planos diretores municipais, carta escolar, entre outros. De entre todos, o trabalho em que mais estive empenhado e consumiu a parte mais significativa do meu tempo de carreira foi a definição da fronteira terrestre com a Indonésia, um trabalho muito exigente a todos os níveis e obviamente com utilização intensiva de informação.

5. OS SIG têm futuro? O que prevê?
Acho que nem é uma coisa questionável, os SIG já estão completamente inseridos no nosso modo de vida. O que pode acontecer é ir-se perdendo a especificidade de um campo chamado SIG e desenvolverem-se áreas de atividade afins e com focos de interesse próprios. A época em que ter uma boa definição de SIG era um assunto quente, talvez pela década de 80 ou 90, aconteceu quando se pretendia agregar numa designação única os vários sistemas que eram, por exemplo, usados para gerir cadastro de infraestruturas e outros com que se faziam estudos ambientais e, além do mais, para diferenciar SIG de sistemas de CAD para cartografia digital. Nessa altura apareceu a “área dos SIG”, e evolução pode levar a que se desagregue, pelo menos parcialmente, sem que isso seja um mal.

Há uns 20 anos eu antevia que viessem a existir uns “cartómatos”, uns robots com sensores e inteligência para fazerem a cartografia ou, em sentido lato, recolherem a informação geográfica. Isso na altura apareceu como um exercício conceptual para entender como seria possível definir as ontologias das características geográficas de modo a que uma máquina o pudesse fazer. Acho que atualmente já nos estamos a aproximar disso e acho que no futuro se vai exigir a atualização automática e contínua de informação geográfica, com drones e com sensores a transmitir em tempo real.

De resto, só consigo prever o que existe agora e que irá evoluir. Teremos muitos e variados sensores, uma portabilidade fácil de sistemas para usar e recolher dados geográficos, a possibilidade de trabalhar grandes quantidades de dados (até em tempo real). Será interessante ver como evolui a participação voluntária na aquisição de informação geográfica com crowd sensing e plataformas como o open street map. Irão aparecer limitações ao desenvolvimento completo do potencial da modelação geográfica que derivam da proteção de dados pessoais, mas esse é um assunto de outro âmbito.

O enriquecimento das infraestruturas de dados geográficos, com conjuntos de dados completos, detalhados e de acesso gratuito, continuará a ser determinante. Do lado da análise julgo que ainda há desenvolvimento por fazer na aplicação de inteligência artificial e no desenvolvimento de modelos para sistemas espaciais complexos.

Acho que, mesmo não sendo visionário, vamos enfrentar tempos complicados em que a gestão ótima de recursos vai ser imprescindível, assim como a prevenção e a resposta em situações de catástrofe natural. Essa necessidade de gestão ótima vai motivar muitos dos desenvolvimentos que referi acima. E, aproveitando o balanço da conversa, aproveito para dizer que quando vier a próxima pandemia gostaria que já existissem modelos de base geográfica, operacionais e eficazes, que permitissem avaliar o impacto de vários cenários de medidas.

6. Do seu ponto de vista, de que forma a nossa Associação (APPSIG) pode contribuir para promover a valorização e divulgação dos SIG?
Uma associação pode sempre ter um papel importante como representante dos seus associados e ser consultada para pareceres sobre decisões ou opções estratégicas de âmbito coletivo. É uma função nobre e de boa cidadania. Já tive o meu papel em organizações dessa natureza, acho que são fundamentais para dar voz à comunidade profissional e com isso beneficiar a sociedade.

Além dessa função, existem as funções de informar, de promover a formação e promover o debate. Uma maneira de ir desenvolvendo estas funções será através de um portal de informação sobre produtos e avaliações imparciais de produtos, notícias relevantes, casos de aplicação, grupos de discussão, etc. Nesta linha corre-se o risco de competir em canais já sobrecarregados de informação, mas uma boa síntese de tópicos e de referências pode ser muito útil. Podem organizar a atribuição de prémios em categorias várias, um prémio credível é uma boa maneira de destacar e promover as boas práticas.

Uma coisa é certa, qualquer coisa que se faça implicará muitas horas de trabalho voluntário, provavelmente com pouco retorno gratificante e sempre na expectativa de conseguir a adesão da comunidade.

https://appsig.pt/