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O Livro Verde sobre o Futuro das Relações de Trabalho e a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital

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O Livro Verde sobre o Futuro das Relações de Trabalho e a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital

Opinião de Manuel Ramirez Fernandes, Advogado especialista em Direito do Trabalho da Ramirez & Associados, Sociedade de Advogados, SP, RL

A carta agrega matérias muito diversas e de grande complexidade. E este conjunto de regras pode, desde logo, aglutinar-se em duas categorias: as que abordam matérias em que já existe regulamentação legal e, como tal, aparecem de forma redundante; e as que abordam novas matérias, ainda que de forma necessariamente genérica. E esta abordagem genérica acaba por ter uma eficácia necessariamente reduzida, mau grado aparecer sob a forma de lei.

Iremos procurar abordar alguns aspetos da Carta que procuram inovar, porque são esses os que poderão merecer maior reflexão, confrontando-os com o que consta das linhas programáticas do Livro Verde.

Como aspeto inicial cabe referir o art.º 1.º/2 da Carta, que dispõe: “as normas que na ordem jurídica portuguesa consagram e tutelam direitos liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço”. É uma norma aparentemente com grande amplitude e alcance, mas que pode ser considerada redundante. Os direitos fundamentais, sempre que se expressem ou se manifestem no ciberespaço, não necessitam de uma Carta que os consagre em contexto tecnológico. Os instrumentos jurídicos existentes, de caráter nacional (com especial relevância para a chamada “Constituição laboral” e para o Código do Trabalho) e internacional (nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos e as Convenções da OIT) já enquadram plenamente esta matéria. E tanto assim é que direitos, liberdades e garantias que não estejam expressamente previstos na Carta não deixam de merecer a mesma tutela quando se expressem em ambiente digital.

De uma forma geral, toda a regulamentação vinculativa estabelecida pelo empregador de acesso e utilização de meios eletrónicos no tempo e espaço de trabalho (que a lei laboral permite sejam regulados pela autonomia privada), não sofre restrição por qualquer normativo da Carta. Nesta ótica, o meio digital é tendencialmente neutro para alterar a sujeição a regras que já existem no meio analógico, estejam elas previstas na lei geral, ou tenham elas sido estabelecidas através de regulamentação vinculativa criada pelo empregador, adaptadas ao meio digital. Estão nesta situação, por exemplo, a “liberdade de expressão e criação em ambiente digital” (art.º 4.º/1 da Carta), as garantias de acesso e uso da Internet e o direito à neutralidade da Internet (arts. 5.º e 10.º da Carta), o direito de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital, bem como o de usar os meios de comunicação digitais para a organização e divulgação de ações cívicas ou a sua realização no ciberespaço (art.º 7.º da Carta). O direito à privacidade em ambiente digital (art.º 8.º da Carta) já tem, atualmente, uma grande proteção legal, mesmo quando ocorre no tempo e/ou local de trabalho, quanto a mensagens de natureza pessoal. O mesmo já poderá não ser extensível a mensagens de natureza profissional, e essa “não-extensibilidade” não se altera com a publicação da Carta. Outros exemplos podem ser dados. O art.º 17.º da Carta aborda o tema do direito à proteção contra a geolocalização abusiva. A lei já consagra o direito que todos os trabalhadores têm à proteção contra a recolha e o tratamento ilegais de informação sobre a sua localização quando efetuem uma chamada obtida a partir de qualquer equipamento e a utilização dos dados da posição geográfica do equipamento de um utilizador só pode ser feita com o seu consentimento ou autorização legal. No entanto, por exemplo, a utilização do sistema de GPS dentro de veículos automóveis tem sido admitida pelos tribunais, por considerarem que não constitui uma forma de controlo da atividade do trabalhador motorista, mas sim um mecanismo de controlo externo do próprio movimento do automóvel, que constitui o meio de desenvolvimento da prestação de trabalho. O art.º 17.º da Carta não vai alterar esta abordagem.

As matérias em que o entrecruzar dos objetivos e linhas programáticas constantes do Livro Verde e da Carta merecem maior reflexão são, quanto a nós, (i) o trabalho à distância, (ii) o emprego na economia das plataformas digitais, (iii) o uso de robôs e inteligência artificial (IA), nomeadamente sob a forma de algoritmos, e (iv) a formação profissional. Estas afiguram-se as temáticas em que a Carta contém matérias que mais poderão influenciar as alterações legislativas na área laboral e o futuro das relações de trabalho.

Relativamente ao trabalho à distância, o Livro Verde vai mais longe do que a Carta, uma vez que procura consagrar expressamente o direito a desligar (direito à desconexão ou desligamento profissional). Esta realidade, paradoxalmente, não mereceu na Carta qualquer referência, estando esta mais preocupada com a garantia do acesso e uso da Internet (art.º 5.º da Carta). Nesta área a Carta poderá auxiliar o regime laboral no objetivo de garantir a salvaguarda da privacidade dos trabalhadores e dos seus agregados familiares, em particular nos casos em que o teletrabalho é prestado no domicílio, reforçando o direito à privacidade em ambiente digital contra a utilização de softwares potencialmente intrusivos (art.º 8.º da Carta).

Quanto à regulamentação do trabalho em plataformas digitais (o que sucede, por exemplo, na Glovo ou na UBER), o art.º 14.º da Carta reforça os direitos dos utilizadores das plataformas que poderão ter reflexos nas relações laborais que aí se estabeleçam, nomeadamente ao nível do direito a receber informações sobre a utilização da plataforma. A “laboralização” destas relações de trabalho que se pretende com a criação de uma “presunção de laboralidade”, irá obedecer a um específico conjunto de requisitos, esclarecendo o Livro Verde que o facto de “o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital”. No entanto, esta é uma das temáticas mais “pantanosas” das relações de trabalho, não só ao nível da sua qualificação contratual, como devido ao facto de existirem diversas formas de trabalho situadas entre a subordinação jurídica laboral clássica e a autonomia característica das prestações de serviços, cuja complexidade irá conhecer um exponencial aumento no meio digital. Esse aumento de complexidade tem o potencial de esbater ou anular qualquer distinção ou fronteira jurídica que se queira estabelecer entre duas figuras contratuais muito distintas no seu enquadramento e consequências jurídicas. E não deverá o Estado substituir-se às partes na definição daquela que é a sua vontade de expressão profissional. As faixas etárias mais jovens têm uma reconhecida tendência para procurar formas de trabalho com grande autonomia, preferência por ambientes de trabalho não hierarquizados e evoluções na carreira sem os limites constrangedores de uma única empresa e, inclusive, sem os limites territoriais dos próprios Estados (sejam eles o do seu país de origem ou não). Promover no meio digital uma política de qualificação contratual laboral com o mesmo paternalismo que a verificada no meio analógico, onde o Estado português pode, inclusive, qualificar uma relação contratual como laboral, mesmo contra a vontade do próprio indivíduo, será um erro ainda maior que o – quanto a nós – verificado no meio analógico.

O uso, pelo empregador, de inteligência artificial (IA) e robôs merece uma reflexão mais cuidada. Este aspeto mereceu consagração específica na Carta (art.º 9.º). Estes meios têm tido uma aplicação crescente em meio laboral, nomeadamente ao nível do recrutamento e seleção de trabalhadores (por exemplo, a práticas de employment background check com a avaliação do perfil e curriculum profissional do candidato a emprego com recurso a dados pessoais do próprio que não têm ligação direta com o tipo de atividade para a qual o mesmo se está a candidatar e que interferem com a sua esfera pessoal ou íntima), da distribuição de tarefas, da organização do trabalho, da avaliação de desempenho e da progressão na carreira. É estabelecido na Carta um dever de comunicação aos destinatários sempre que se usem algoritmos com impacto significativo na sua esfera. Algoritmos que devem poder ser auditados e devem ser auditáveis. Esta obrigação carece de adaptação em meio laboral, nomeadamente ao nível da concretização específica dos princípios gerais previstos na Carta (da beneficência, da não maleficência, do respeito pela autonomia humana, pela justiça e pela tolerância). O meio laboral tem regras e especificidades, essencialmente decorrentes da subordinação jurídica do trabalhador ao empregador, que limitam a autonomia daquele e o obrigam a sujeitar-se a um conceito de justiça que, mau grado dever existir, a sua exata fisionomia e concretização passa pelo poder de direção e controlo do empregador. Neste concreto aspeto a Carta poderá auxiliar a encontrar o caminho para evitar os aspetos negativos que o próprio Livro Verde enuncia, quando refere que a IA “comporta igualmente um conjunto de sérios riscos em áreas como a privacidade e segurança, opacidade e distanciamento nas relações de trabalho, bem como em processos de decisão pouco transparentes, e na potencial discriminação e exclusão com base no funcionamento dos algoritmos.

Talvez a área em que a Carta possa ter mais impacto quando conjugada com as relações laborais se situe no direito ao desenvolvimento de competências digitais (art.º 11.º da Carta). O livro Verde estabelece como objetivo o alargamento em grande escala das competências digitais e da literacia de dados relacionadas com a inteligência artificial, bem como as competências ligadas às novas tecnologias, em diferentes setores e em todos os níveis de qualificação, assegurando também a adequação e atualização de modo ágil dos conteúdos formativos nas diferentes tecnologias. Recai sobre o empregador um dever geral de formação profissional dos trabalhadores. A conjugação desse dever com o direito à educação para a aquisição e o desenvolvimento de competências digitais de todos os cidadãos, que recai sobre o Estado, com a obrigação de promover e executar “programas que incentivem e facilitem o acesso, por parte das várias faixas etárias da população, a meios humanos e digitais e tecnológicos”, irá seguramente (re)direcionar parte da formação profissional em ambiente laboral para esta realidade. As empresas têm de contar com a ajuda e intervenção decisiva do Estado para a prossecução deste objetivo, nos termos em que a Carta o determina. Este entrecruzar de responsabilidades empresariais e estatais tem o grande potencial de, por um lado, promover a manutenção de emprego por via da reconversão profissional dos trabalhadores, e, por outro lado, aumentar exponencialmente a empregabilidade geral dos trabalhadores, em atividades assentes em competências digitais, ou onde essas competências se apresentam de forma determinante para a manutenção e desenvolvimento de uma prestação de trabalho. Esperemos que as empresas e o Estado (bem como associações sindicais e patronais, sobretudo as que têm assento na concertação social) saibam conjugar os respetivos esforços nesse sentido, atenuando o esperado impacto que a evolução da tecnologia se antevê venha a ter como fator de desemprego. Para esse efeito têm de abandonar as tradicionais querelas político-ideológicas e interesses setoriais em benefício desses bens maiores que são o direito ao trabalho digno e à criação de condições para o desenvolvimento sustentado das empresas que o asseguram.