Contratação Pública em destaque

António Ferreira dos Santos, na qualidade de Inspetor-Geral da Inspeção-Geral de Finanças – Autoridade de Auditoria, contou à Revista Pontos de Vista tudo o que, enquanto cidadãos, podemos e devemos saber sobre o tema da Contratação Pública, desde a sua importância à inovação dos processos que, segundo o próprio, têm tido evolução globalmente positiva. Saiba tudo.

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No seu ponto de vista, e enquanto Inspetor-Geral de Finanças, qual é a importância da Contratação Pública?
A contratação pública configura uma área estruturante da gestão pública, atento, desde logo, o peso que a respetiva despesa representa no orçamento das administrações públicas, calculando-se que o seu valor corresponda a mais de 16% do PIB da União Europeia.
Em Portugal e tomando como referência o ano de 2019, para evitar enviesamentos decorrentes da pandemia decorrente do COVID-19, a aquisição de bens e serviços correntes e de bens de capital nas entidades integradas no perímetro orçamental, superou os 18 mil milhões de euros (valores da Conta Geral do Estado), representando mais de 11% da despesa daquelas entidades.
O quadro legal que rege esta matéria tem subjacente a prossecução de princípios essenciais ao funcionamento e consolidação do mercado único europeu, v.g., a concorrência, a igualdade e a transparência, sendo igualmente de sublinhar o relevante papel de alavancagem de políticas transversais, designadamente nas áreas sociais e do ambiente.

Acredita que, ao longo dos anos, se tem inovado positivamente os processos de Contratação Pública, de modo a atingir os níveis de desempenho desejados? O que se tem vindo a modificar?
Sim, o quadro legal aplicável tem tido uma evolução que considero globalmente positiva, de onde ressaltam claramente os aspetos de inovação em matéria procedimental.
Sem querer recuar demasiado no tempo, é incontornável o marco que representa a aprovação do Código dos Contratos Públicos, em que pela primeira vez foi concentrado num único diploma, a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo.
Destaco ainda a inovação que representou a aposta no e-procurement, onde Portugal foi pioneiro, enquanto importante instrumento de maximização da transparência nos procedimentos pré-contratuais e que, em nossa opinião, deverá ser ainda alargado, tornando-o obrigatório mesmo nos procedimentos não concorrenciais, pelo menos os de valor mais elevado.
Ainda na ótica da transparência, não poderei deixar de referir o Portal BASE, repositório da grande maioria dos contratos públicos, tornando tal informação acessível ao escrutínio de qualquer cidadão.
Há, com certeza, ainda um caminho a percorrer, designadamente no que se refere à utilização de determinados tipos de procedimentos vocacionados para a inovação, naturalmente desde que verificados os pressupostos para o recurso aos mesmos, que atualmente têm uma expressão residual, desde logo, a relativamente recente parceria para a inovação mas, também, o já não tão recente diálogo concorrencial.

Há quem afirme que existem dificuldades claras no que diz respeito ao formar e gerir os grandes Contratos, de forma eficaz e eficiente e, simultaneamente, imunizá-los em relação a problemas, como por exemplo, de corrupção. Concorda? Porquê?
Desconhecendo o contexto em que foi proferida e a autoria da afirmação, torna-se difícil concordar ou discordar simplesmente da mesma, sendo prudente evitar generalizações que, em regra, não são desejáveis. Se é verdade que uma maior dimensão financeira consubstancia um fator de risco, tal não significa forçosamente que tal risco se concretize em procedimentos desconformes ou mesmo ilegais.
Aliás, quanto maior o projeto, também maior será o escrutínio a que o mesmo está sujeito. Desde logo numa fase preliminar, através do controlo efetuado pelo Tribunal de Contas em sede de fiscalização prévia, mas também pela atuação dos órgãos de controlo da Administração Pública, não esquecendo a cada vez mais presente e salutar atenção por parte, por exemplo, da comunicação social e dos cidadãos em geral.
O próprio Código dos Contratos Públicos tem vindo a densificar os mecanismos de acompanhamento e controlo da execução dos contratos, de que é exemplo a implementação da figura do gestor do contrato que, aliás, já configurava uma boa prática precisamente em grandes projetos públicos, ainda antes da sua consagração normativa.
Por último, importa referir que a dimensão financeira não é, de forma alguma, o único fator de risco na contratação pública. Existem inúmeros sinais de alerta, que poderão ocorrer em procedimentos de menor expressão financeira, tais como explicado na nossa brochura sobre a Gestão dos Riscos em Contratação Pública, disponível em https://www.igf.gov.pt/aigf/primeirapagina/IGF_91_Anos_Gestao_dos_Riscos_na_Contratacao_Publica.pdf

Que mitos ainda existem por desconstruir no que concerne ao Código dos Contratos Públicos?
Vários, mas atrever-me-ia a dizer que a maioria deriva de um deficiente conhecimento do regime legal no mesmo contido. Este é, de facto, um dos principais problemas com que a área da contratação pública se debate, ou seja, a insuficiente capacitação dos trabalhadores que lidam com estas matérias, preocupação, aliás, partilhada por diversas entidades, com destaque para a Comissão Europeia.
Destacaria ainda a ideia, a meu ver errada, de que o recurso reiterado a procedimentos não concorrenciais, é consequência da morosidade e complexidade dos procedimentos abertos ao mercado.
Recordo, a título de exemplo, que um concurso público sem publicidade internacional pode ter um prazo de apresentação de propostas de apenas 6 dias e que a peça-chave de qualquer procedimento, o caderno de encargos, tanto tem de ser elaborado num concurso público, como num ajuste direto e um bom caderno de encargos é essencial para garantir a adequada execução do contrato e a qualidade, eficiência e eficácia de todo o processo.
Ao não abrir ao mercado a possibilidade de apresentação de propostas, as entidades adjudicantes estão, na maioria dos casos, a comprar em condições mais desvantajosas, com evidente prejuízo para o interesse público.

Recentemente foram aprovadas as alterações ao novo Código dos Contratos Públicos. Que medidas serão aplicadas consoante o novo CCP? Na prática, o que irá mudar?
A revisão efetuada corrigiu algumas imprecisões de que padecia o articulado do Código, sendo de salientar igualmente o reforço dos aspetos relativos às garantias de imparcialidade e à adoção de medidas adequadas para impedir, identificar e resolver eficazmente os conflitos de interesses, a densificação e clarificação de determinados regimes, de que são exemplo os aspetos relativos ao gestor do contrato.
No entanto, existem também alguns focos de preocupação, designadamente no que se refere à compatibilização com o Direito Comunitário de certas disposições, designadamente as relativas a preferências regionais e aos contratos reservados a PME’s.
Para além disso, continuam a existir matérias que carecem de atenção do legislador, das quais salientamos a premente revisão do regime de realização das despesas públicas, que ainda se rege por um diploma de 1999 (com os valores em contos) e a necessidade de incorporar no Código uma norma que imponha às entidades adjudicantes a elaboração de verdadeiros planos de compras, já que a ausência de planeamento, é, em nossa opinião, a causa esmagadoramente maioritária das desconformidades detetadas nos procedimentos de contratação pública.

Acredita que estas alterações vêm simplificar e acelerar os processos de Contratações Públicas? Quais são as expetativas para o futuro dos mesmos?
A expectativa é essa. Contudo, como sabem, uma entidade de controlo desenvolve o seu trabalho com âmbitos temporais normalmente correspondendo aos 2/3 anos anteriores, pelo que só daqui a algum tempo poderemos efetivamente aferir quais os impactos que estas alterações tiveram na prática.
Não obstante a questão que me é colocada se refira explicitamente às alterações ao CCP, julgo que, nas entrelinhas, estaria também presente a ideia de nos pronunciarmos sobre as medidas especiais de contratação aprovadas em simultâneo com estas alterações.
Sobre estas, numa perspetiva puramente técnica, poderei dizer que, entendendo as razões de simplificação e agilização de procedimentos que subjazem à sua promulgação, as mesmas suscitam algumas dúvidas, fundadas numa eventualmente excessiva limitação da concorrência, que enquanto entidade de controlo não podemos ignorar.