Foi no dia 4 de dezembro que se celebrou o Dia Nacional da Pessoa com Esclerose Múltipla: uma doença crónica, inflamatória e degenerativa que afeta o Sistema Nervoso Central. Qual a importância de assinalar uma data como esta?
Acredito ser de extrema importância a existência de dias mundiais e/ou nacionais para determinadas doenças, sobretudo para aquelas que possa haver maior desconhecimento ou desinformação sobre as suas características e que estejam associadas a maior cronicidade, com consequentes prejuízos pessoais, sociais e laborais. A Esclerose Múltipla (EM) é um exemplo paradigmático do que acabei de referir.
Os dois motes para esta efeméride são o respeito e a inclusão das pessoas portadoras de Esclerose Múltipla. Com que metodologia se pretende alcançar esta missão? Acredita que ainda existem muitas lacunas por colmatar neste sentido?
O respeito deveria ser algo inerente à sociedade em que vivemos, independentemente de ser portador de determinada doença ou característica pessoal, contudo sabemos que, infelizmente, isso ainda não acontece a uma escala global. Em particular, nos doentes com EM, ainda constatamos situações lamentáveis de exclusão laboral e social e outro tipo de faltas de respeito que são inaceitáveis. Conheço situações de despedimentos e rejeição em cargos laborais apenas pelo simples facto de ser portador desta doença, independentemente das capacidades físicas ou psicológicas das pessoas em questão. Creio que a melhor forma de colmatar estas falhas, é informar devidamente o público em geral sobre a doença e sobre os doentes, combater a desinformação e incentivar campanhas para eventos nos quais se possam abordar estas questões. A existência de um dia nacional para a Esclerose Múltipla permite dar voz aos doentes, combater alguns mitos sobre a doença, esclarecer dúvidas e estimular o convívio e o respeito entre todos os envolvidos.
Sabemos que cada vez mais é crucial alertar a população para este problema, desde os seus sintomas, à sua gravidade e ao seu tratamento. Na perspetiva do João Ferreira, como é que se está a acompanhar esta doença em Portugal?
A minha perceção é que tem existido, nos últimos anos e gradualmente, um maior conhecimento sobre esta doença e suas características. Para isto, muito têm contribuído os médicos neurologistas, enfermeiros, farmacêuticos e outros profissionais de saúde com quem os doentes interagem regularmente, tanto de modo presencial como digital. Também a indústria farmacêutica, com a criação de inúmeras ações de formação e cursos que visam a aprendizagem contínua sobre a doença para profissionais de saúde e para os próprios doentes e suas famílias e as sociedades nacionais de doentes com EM, através de campanhas de sensibilização para o público, para doentes e suas famílias, entre outras. Em suma, eu diria que estamos todos a aprender cada vez mais uns com os outros sobre a Esclerose Múltipla em Portugal.
Tendo em conta que estamos a entrar numa terceira fase de vacinação da Covid-19, quão relevante é para os doentes de Esclerose Múltipla usufruir desta vacina? Porquê?
Gostaria de realçar que, pelos dados que temos até à data, não parece existir um maior risco de contrair ou de ter doença mais grave por Covid-19 sendo portador de EM. Nem existem dados que permitam afirmar que a resposta à vacinação é diferente em pessoas com Esclerose Múltipla comparativamente com a população geral. Relativamente às normas atuais da Direção-Geral da Saúde sobre a terceira fase de vacinação, a maioria das pessoas com esta doença não são consideradas prioritárias, tendo em conta o que referi anteriormente. Contudo, uma percentagem de doentes com EM, sobretudo aqueles com formas mais agressivas da doença, necessitam de efetuar tratamento com fármacos imunossupressores, como por exemplo ocrelizumab, fingolimod ou cladribina. Nestas situações, perante uma possível menor resposta imunitária à vacinação, está recomendado o reforço com a terceira dose da vacina. Os doentes devem esclarecer com o seu neurologista assistente se são elegíveis ou não para esta fase de vacinação.
O tratamento da Esclerose Múltipla implica todo um procedimento médico onde o doente deve estar atento a todos os sintomas. Como é feito o auxílio de um paciente que suspeita ser portador da doença?
Os sintomas referidos por uma pessoa com EM podem ser variados, no entanto muitos deles são inespecíficos, ou seja, podem estar presentes em pessoas sem qualquer doença ou com patologias distintas. Estes sintomas inespecíficos – como por exemplo a fadiga, a pouca tolerância a esforços, dor crónica ou recorrente, tonturas – auxiliam no diagnóstico se estiverem presentes simultaneamente com sintomas específicos da Esclerose Múltipla. Estes últimos são variados e surgem gradualmente ao longo de horas ou dias, sendo os mais comuns a visão turva em um ou nos dois olhos, visão dupla, dormência, perda de força muscular ou coordenação motora num ou vários membros, desequilíbrio ou sensação de pernas “presas” a andar. Perante um ou vários destes sintomas, particularmente os sintomas específicos, a pessoa deve procurar um neurologista e depois desencadeia-se um processo para o diagnóstico no qual temos como pontos-chave: o cuidadoso exame neurológico ao doente, a realização de Ressonância Magnética cerebral ou medular e outros exames complementares caso sejam necessários, como por exemplo a punção lombar.
Certo é, esta é uma doença que – infelizmente – ainda desperta algum preconceito por parte de quem não conhece as suas características. De que forma se pode erradicar esta intolerância?
Concordo plenamente com essa afirmação e é algo que eu pessoalmente tento combater a cada consulta que faço, a cada doente recém-diagnosticado que sigo e suas respetivas famílias e a cada comunicação que faço sobre a doença, no contexto apropriado. Creio que a melhor forma de enfrentar o preconceito que ainda abrange a EM é tentar perceber melhor a doença em si e os doentes que com ela vivem, incentivar a procura pela informação correta e apropriada sobre a mesma contrariando a muita desinformação que ainda circula, estimular a criação e participação ativa da população em eventos e formações no âmbito da EM.
Assinalar o Dia Nacional da Pessoa com Esclerose Múltipla é fundamental também para dignificar os doentes e promover a sua qualidade de vida com o respeito que merecem. Neste sentido, como é que a população pode cooperar com os doentes e as respetivas famílias?
Eu diria que a melhor forma de cooperação que a população geral poderá ter para com os doentes com EM é a demonstração de respeito e compreensão, fortalecidos, uma vez mais, com adequado conhecimento sobre a doença e suas características muito particulares. É importante perceber que, muitas das pessoas portadoras desta doença, sofrem diariamente com sintomas disfuncionais e incapacitantes, que são invisíveis a terceiros e extremamente difíceis de explicar. Percebermos a doença e os doentes, só por si, ajuda a aumentar a qualidade de vida das pessoas com EM.
Por fim, como é que o João Ferreira vê o futuro da inclusão desta doença, bem como a sua cura? O otimismo é um fator-chave?
Como sublinhei anteriormente, na minha opinião o conhecimento da população geral sobre a doença tem aumentado e tenho a certeza que irá continuar no futuro. Os doentes são cada vez mais compreendidos e devem prosseguir na sua tarefa de se fazerem ouvir a si e à doença de que são portadores. Quanto à eventual cura da EM, devemos conter um pouco o entusiasmo, pelo menos para já. A Esclerose Múltipla foi descrita por Charcot há mais de 150 anos atrás. Os primeiros tratamentos que modificam o curso natural da doença surgiram apenas há 30 anos, contudo, só nos últimos dez anos, as opções terapêuticas nesta doença praticamente triplicaram. Portanto, na minha opinião, podemos estar otimistas sobre as próximas décadas no que diz respeito a tratamentos modificadores e, talvez, curativos para esta doença tão incapacitante.