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“Os Portugueses podem e devem confiar na sua Justiça e na Independência dos Magistrados”

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“Os Portugueses podem e devem confiar na sua Justiça e na Independência dos Magistrados”

O XII Congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, irá realizar-se de 25 a 26 de março, sendo um evento de enorme relevância no domínio da cúpula deste setor em Portugal. Neste domínio, e no sentido de contextualizar junto do nosso leitor, qual a importância deste evento e de que forma é que o mesmo é vital para o setor?
Os Congressos organizados pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público ocorrem de três em três anos e são um fórum cívico de discussão científica, plural e pluralista, centrado na reflexão sobre o Ministério Público e os seus magistrados: a autonomia; identidade e transparência institucional, organizativa e funcional; a pluralidade das suas funções e competências; o papel decisivo para a construção de uma justiça com mais qualidade, mais humana e mais próxima dos cidadãos; a compatibilização da vida profissional com a vida pessoal; e, condições adequadas e dignas ao exercício das suas funções.
O Sindicato representa mais de noventa por cento dos magistrados do Ministério Público e o congresso conta sempre com elevada adesão, sendo que no próximo estão inscritos 400 magistrados num universo de 1.600, assumindo, pela qualidade dos temas tratados e dos oradores convidados, uma importância relevantíssima no quadro do associativismo judiciário nacional e um marco para o Ministério Público e a vida judiciária do país.

Quais serão os principais temas “discutidos” no mesmo e de que forma é que se torna cada vez mais premente abordar e encontrar soluções para esses temas/assuntos, principalmente na promoção da defesa dos interesses dos magistrados do Ministério Público?
O congresso subordinado ao tema “Autonomia/Responsabilidade, Qualidade e Cidadania”, divide-se em duas vertentes. Por um lado, uma reflexão crítica sobre aspetos da vida interna do Ministério Público, da hierarquia, de forma a combater eventuais vícios adquiridos e que importa corrigir, como a questão das inspeções, a gestão dos quadros, o comportamento da hierarquia, o direito dos magistrados à saúde e à sua vida pessoal e familiar. Por outro lado, sobre o seu papel na sociedade, a essencialidade da sua autonomia, interna e externa, e como pode melhorar a sua capacidade de resposta, dentro das suas múltiplas funções, em termos de qualidade e eficácia

Que análise perpetua das iniciativas legislativas na área da justiça em Portugal? Acredita que estamos num momento chave da justiça em Portugal, ou seja, pela dinâmica e promoção de maior qualidade na justiça e, consequentemente, na democracia portuguesa?
Os principais problemas da justiça não têm a ver com a falta de instrumentos legais. Nem sempre uma grande produção legislativa corresponde a uma melhoria da resposta do sistema de justiça. O esforço do legislador deve ser no sentido da simplificação, harmonização e estabilização da legislação.
Aliás no âmbito da Estratégia Nacional Anticorrupção e no quadro apressado com que se aprovaram alterações legislativas na Assembleia da República passaram algumas, como a alteração do artigo 40º, do Código de Processo Penal, que apenas vão contribuir para paralisar os processos penais, com os sucessivos impedimentos por parte dos juízes em resultado da mesma.
A resolução das principais ineficiências do sistema de justiça, dependem, essencialmente, de um forte investimento em meios e de uma melhor alocação dos meios.

Em Portugal, na vertente da justiça e do direito, é recorrente que exista sempre a polémica de escassez de meios. Qual a sua opinião sobre esta matéria?
Os meios são sempre escassos, nunca se atinge um nível ótimo de meios. Porém, o que temos em Portugal é um quadro de insuficiência gritante de meios.
Em quase nenhum tribunal ou DIAP existem salas próprias para inquirição de testemunhas ou interrogatório dos arguidos. Se precisar de realizar uma diligência o magistrado ou a realiza no próprio gabinete, tantas vezes partilhado com outros colegas ou é realizada nas secções dos funcionários, em espaços já exíguos, com total devassa pela privacidade das pessoas ouvidas.
O quadro de funcionários que está afeto ao Ministério Público é claramente insuficiente e não tem formação e qualificação adequados ao tipo de funções desempenhadas por esta magistratura.
Faltam peritos, tradutores com formação adequada, equipamentos de digitalização e videoconferência.

Acredita que os cerca de 1600 magistrados do Ministério Público são insuficientes para responder às exigências deste setor? Que caminho devemos seguir neste domínio? Estes números impedem que o MP possa prestar um trabalho condigno, de qualidade e com eficiência?
Atendendo à multiplicidade de competências atribuídas ao Ministério Público, que exerce funções nos tribunais administrativos e fiscais, no comércio, nas execuções, no trabalho, na família e menores, no crime e que detêm em exclusividade o exercício da ação penal, o quadro existente é claramente insuficiente. Em nenhum outro país da Europa o Ministério Público tem atribuídas tantas competências.
A grande generalidade dos magistrados do Ministério Público trabalha no limite das suas capacidades, assoberbados em trabalho, a ter que acumular, e, nessas condições, é impossível assegurar a qualidade e eficiência desejáveis.
O caminho só pode ser o de reforçar o quadro de magistrados e implementar um quadro de assessores já legalmente previsto, mas que nunca saiu do papel.

As carências de quadros de magistrados em virtude das jubilações e aposentações vem acentuar, ainda mais, este problema. Este cenário será certamente resolvido com planeamento atempado e boa gestão dos meios. Acredita que este panorama não espelha a realidade atual?
A previsão de saídas por aposentação/jubilação até 2026 é de 304 magistrados, de acordo com os dados do relatório anual do Conselho Superior do Ministério Público, o que significa que mesmo a manter-se a abertura anual de um número de vagas coincidente ao dos dois últimos concursos, ou seja, 65, tal será insuficiente sequer para compensar o número de saídas quanto mais suprir a falta de magistrados existente.
A única solução é a abertura de imediato de um concurso para 200 magistrados e depois manter-se os concursos anuais em número de vagas nunca inferior a 65.

A solução não pode passar pela redução dos períodos de formação inicial dos cursos de magistrados, permitindo assim que estes profissionais cheguem mais depressa aos tribunais? Corremos o risco de desvirtuar a justiça em Portugal e de promover a carência de profissionais mal preparados para a função?
Essa solução já tem sido utilizada nos últimos anos, não sendo possível, nem desejável, encurtar ainda mais o período de formação, sob pena de isso ter, como já tem tido, reflexos na qualidade e preparação dos novos magistrados.

Se calhar impulsionada pela pandemia, a verdade é que a digitalização da justiça portuguesa, é cada vez mais uma realidade, diria até, um caminho sem retorno. Como analisa esta aposta na inovação e tecnologia por parte da justiça em Portugal e de que forma é que esse novo paradigma poderá ser positivo, ou não, para a justiça e para ajudar a aproximar os portugueses do sistema de justiça?
A digitalização dos processos é uma vertente importante do processo de preservação de dados e de modernização da justiça, mas a sua contribuição para uma justiça mais célere depende, desde logo, de todos os tribunais e departamentos do Ministério Público estarem dotados de digitalizadores rápidos, algo que ainda não acontece, sobretudo ao nível do Ministério Público. Por outro lado, importa a existência de equipamentos adequados para os magistrados trabalharem nos processos apenas em formato digital e que o programa utilizado seja muito mais rápido e intuitivo que o atual “citius”. A título de exemplo, já sendo obrigatório trabalhar nos processos criminais que transitam para a fase de julgamento em suporte eletrónico, certo é que na maior parte dos tribunais a fase de inquérito ainda não se encontra digitalizada, obrigando os magistrados a ter que se socorrer do suporte em papel.
A digitalização poderá potenciar, no futuro, a consulta dos processos sem que os cidadãos tenham que se deslocar ao tribunal e, por esse facto, permitir aos interessados acompanhar o desenvolvimento dos processos em que são partes interessadas de forma mais próxima.

É legítimo afirmar que também nesta vertente da modernização da justiça, escasseiam meios para que esta mudança de paradigma possa ser um processo transparente, célere, credível e eficaz? Sendo esta aposta no digital essencial, preocupa-o a vertente da cibersegurança no domínio da justiça?
O processo de modernização da justiça exige, desde logo, que juízes e magistrados do Ministério Público sejam ouvidos e façam parte integrante do desenvolvimento do mesmo, sob pena de as alterações implementadas apresentarem insuficiências na sua aplicação prática, como tem acontecido.
Para além disso e de forma a garantir a segurança dos conteúdos e a confidencialidade dos dados era importante que existisse um controlo dos acessos, isto é, que se pudesse determinar quem acede e ao que acede e, por outro lado, que todo o sistema fosse gerido por uma comissão na dependência dos conselhos superiores da magistratura e do Ministério Público e não, como hoje sucede, na dependência exclusiva do IGFEJ que faz parte integrante do Ministério da Justiça.
Claro que é igualmente importante apostar na cibersegurança, nos mesmos termos que instituições bancárias, empresas, etc., de forma a evitar acessos ilegítimos ou ciberataques.

A verdade é que não podemos escamotear a realidade atual, ou seja, existe atualmente algum afastamento, diria até descrédito, dos portugueses com a justiça em Portugal e os seus players. Como vê este cenário e de que forma é que é vital e possível inverter este panorama? Os portugueses podem e devem confiar na justiça portuguesa e nos «atores» que perpetuam a mesma?
Os últimos anos têm sido marcados por um crescente interesse dos meios de comunicação social e, através deles, da comunidade pelos processos criminais. Os sucessivos casos que tocam todos os arcos do espectro político, e financeiro, e vão desde a base até ao topo, vão do Norte ao Sul, da Administração local à Administração Central, despertam a atenção de todos e geram sentimentos ambivalentes, por um lado de justiça perante uma perceção elevada por parte da sociedade dos fenómenos criminosos relacionados com a corrupção e a criminalidade económico-financeira e, por outro lado, de alguma apreensão ou mesmo descrença que tudo não passe de um “fumus iustitiae” e  que pela demora dos processos e o conhecimento de algumas decisões entretanto proferidas ninguém venha, a final, ser responsabilizado.
A acrescer a isto, enquanto por um lado os jornalistas cumprem o seu dever de informar a opinião pública, aparecem uns pretensos “entendidos”, muitas vezes com interesse direto nos processos e que usando da sua “autoridade” de “esclarecidos” e da sua presença constante nos meios de comunicação social, tentam lançar a confusão, propalando inveracidades sobre os processos e desinformando.
Este fenómeno propicia uma perceção por parte dos cidadãos de que a justiça não funciona, que é lenta, que não é igual para todos.
Porém, nos últimos vinte anos, a justiça evoluiu em quase todas as jurisdições, desde o cível, o trabalho, a família, as execuções e mesmo no crime, permitindo que os cidadãos tenham hoje uma resposta de maior qualidade e mais célere.
Os principais constrangimentos estão ao nível da jurisdição administrativa e fiscal, mais dependente da máquina administrativa do Estado e onde nunca existiu por parte deste uma vontade inequívoca de mudar o estado das coisas.
No domínio penal os principais constrangimentos surgem num número restrito de processos, mais mediáticos por envolverem políticos ou banqueiros, mais complexos por estar em causa uma criminalidade mais sofisticada, transnacional, onde predominam os pactos de silêncio.
Nesses processos os problemas são de vária ordem: da estratégia seguida pelo Ministério Público e na falta de objetividade, por vezes, na definição e concentração do objeto da investigação; na falta de meios e na dependência de elementos na posse de autoridades estrangeiras; e, na capacidade e poder económico que têm os arguidos de protelar o andamento do processo com recurso a expedientes dilatórios e abusivos.
Mas, mesmo com algumas ineficiências, os portugueses podem e devem confiar na sua justiça e na independência dos magistrados.

A terminar, que mensagem lhe aprazaria deixar aos portugueses, no sentido de confiarem na justiça em Portugal?
Todos os dias os magistrados do Ministério Público trabalham de forma dedicada, competente e discreta para prestar à sociedade um serviço de justiça de qualidade e próprio de um Estado de direito democrático.
Fazem-no de forma independente, com sujeição a um regime de exclusividade funcional sem paralelo com outras atividades e vinculados a um vasto conjunto de deveres estatutários e regras de natureza ética.
Existem insucessos, dificuldades, ineficiências, mas a procura de soluções de superação é contínua. A autonomia do Ministério Público é a maior garantia que os cidadãos podem ter de uma justiça independente e cada vez mais igual para todos.