A RSA – Raposo Subtil e Associados/Sociedade de Advogados, é uma sociedade de advogados portuguesa, líder em operações e litígios complexos em diversas temáticas e jurisdições. Assim, de que forma têm vindo a privilegiar o tratamento personalizado de quem vos procura e a promoção da dignificação do mundo do Direito em Portugal e além-fronteiras?
Tiago Marques (TM) – A RSA – Raposo Subtil e Associados orgulha-se de ser a sociedade de advogados fundadora da RSA-LP, Rede de Sociedades de Advogados de Língua Portuguesa, pelo que, tem presente, o peso do Direito na sociedade, quer em Portugal, quer nos países de língua portuguesa onde a RSA-LP está inserida, nomeadamente, Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Brasil. A dignificação do Direito começa com a exigência interna de cada advogado envolvido neste projeto além-fronteiras, sendo uma honra sentir que fazemos a diferença nos vários projetos em que participamos.
O crime de branqueamento de capitais e a utilização de provenientes ilícitos desse ato para financiamento de ações consideradas por lei como terrorismo é cada vez mais recorrente. Sendo esta uma das vossas áreas de atuação, qual consideram que é a melhor forma de prevenir e combater o mesmo? Qual o papel da RSA nesta vertente?
João Luz Soares (JLS) – A prevenção do fenómeno do branqueamento de capitais, entendida num espetro mais lato de combate à criminalidade económica, consubstanciou-se como uma das áreas essenciais na organização jurídica sustentável de qualquer entidade. De facto, mais do que uma abordagem jurídica conjuntural a esse fenómeno é necessário, apostando numa formação constante dos ativos, construir mecanismos de identificação e sinalização de operações potencialmente suspeitas, sedimentando aquilo que é uma cultura mais profunda e estrutural de abordagem de compliance, integridade e transparência nas próprias organizações. Obviamente, também, que tal só será possível se as entidades tiverem condições (jurídicas) para acompanhar este paradigm shift que tem um pressuposto basilar: quando falamos em BCFT, temos que falar obrigatoriamente, também, nas pontes lógicas de contacto que estabelece com outros regimes igualmente estruturantes. Destacamos, a esse propósito, o regime da corrupção, a nova lei do whistlwblowing, entre outros. O fenómeno é, por isso e hoje, poliédrico e exige uma resposta presente, mas, sobretudo, multidisciplinar. É essencial, por isso, que as entidades e os seus responsáveis pelo cumprimento normativo estejam preparadas para lidar com redes legais complexas[1], exigentes tecnicamente, mas que partilham um desiderato comum de combate aos fenómenos de criminalidade. Tal esforço assenta na compreensão e aplicação concreta de instrumentos e autênticas políticas de compliance, através de programas de cumprimento normativo, os quais deverão incluir os planos de prevenção ou gestão de riscos, os códigos de ética e de conduta, programas de formação, os canais de denúncia assim como a designação de um responsável pelo cumprimento normativo. Todos estes regimes legais, incluindo, especialmente, o da prevenção de branqueamento de capitais estipulam modelos sancionatórios próprios (aqui concretamente ao nível contraordenacional) que, afastando-se da batuta geral, preveem coimas pesadas para as entidades obrigadas que não cumpram com as obrigações ali ínsitas. Por isso, o nosso papel é também desafiante. Passa, sobretudo, neste âmbito, pelo apoio jurídico às entidades obrigadas, de forma que estas conheçam e percebam as medidas que devem ser adotadas com o intuito de prevenir situações de criminalidade financeira e respetivas contraordenações. Concomitantemente, é também essencial perspetivar, num nível subsequente, aquilo que é uma umbrela de serviços especializados de aconselhamento jurídico e patrocínio forense em todas as instâncias penais e contraordenacionais, bem como junto das diversas entidades reguladoras as quais têm vindo a assumir cada vez maior relevo. No entanto, parece-me que a intervenção da RSA é também fundamental num momento prévio de aconselhamento comportamental preventivo para as atividades das empresas e instituições, perspetivando as suas características definidoras e propondo programas e veios de compliance que possam ser eficazes.
Sabemos que em dezembro do ano passado foi publicada a lei que estabelece o regime geral de proteção de denunciantes de infrações, isto é, a lei de Whistleblowing. Para melhor compreendermos, do que trata mesma? Qual o seu propósito? Que lacunas ainda lhe identificam?
(JLS) – A Lei n.º 93/2021, consagra o regime geral de proteção de denunciantes de infrações, através da transposição da designada “Diretiva de Whistleblowing”, aplicando-se ao setor público e privado, sujeitando as entidades/pessoas coletivas obrigadas a construir, por um lado, canais de denúncia internos e, por outro lado, a concretizar medidas específicas de confidencialidade, tratamento de dados pessoais, conservação de denúncias e de proteção e apoio do whistleblower (do denunciante). Este mecanismo, previsto num espetro mais largo de uma política de compliance enquanto instrumento de mudança de paradigma de organização das entidades obrigadas, insere-se numa preocupação com a prevenção e luta de fenómenos de criminalidade económica. Pretendendo-se defender a essência da democracia e os seus princípios fundamentais, designadamente os da igualdade, transparência, livre concorrência, imparcialidade, legalidade, integridade e a justa redistribuição de riqueza. Sendo ainda precípuo fazer uma análise da implementação da lei, das suas características e possíveis fragilidades, parece que existem ainda alguns desafios de implementação prática. Por um lado, apontaria, desde logo, um desafio de (i) sistematização jurídica – esta obrigação de construção de canais de denúncia internos não é nova e existia, já, naquilo que eram os alguns regimes setoriais (como por exemplo, no regime de prevenção de branqueamento de capitais). No entanto, agora, existe mesmo uma remissão expressa em alguns regimes para a Lei do Whistleblowing (veja-se o caso do Regime Geral de Prevenção da Corrupção) que parecer garantir uma aplicabilidade lata da Lei 93/2021. Assim, é importante garantir uma leitura harmoniosa e equilibrada entre os diferentes regimes de forma a assegurar, também, uma eficaz implementação e preenchimento dos objetivos da Lei do Whistlwblowing. Em segundo lugar, um óbvio desafio de (ii) implementação junto daquilo que são algumas das entidades obrigadas. Relembramos, a este propósito, que este Lei do Whistleblowing se aplica também ao setor privado, a empresas com 50 ou mais trabalhadores, sendo que esta poderão ter alguma dificuldade de adaptação imediata às exigências legais, nomeadamente naquilo que é a criação dos mecanismos de canais de denúncia interna. E aqui as dificuldades de implementação não são só, leia-se, a um nível operacional, mas também a um nível jurídico de compreensão das próprias exigências legais e de efetivação de medidas Práticas que garantam a Confidencialidade, tratamento de dados e confidencialidade de denúncias. Em terceiro lugar, apontaria para uma certa (iii) necessidade de desenvolvimento conceptual subsequente. Este vetor é especialmente visível naquilo que é a definição do responsável pelo cumprimento normativo na Lei de Whistleblowing, uma vez que não é definido qualquer âmbito competencial ou funcional específico. Ainda que tal fragilidade possa ser suprida por remissão para a figura do RCN noutros regimes setoriais – nomeadamente no regime de BCFT- a verdade é que ainda é necessário trilhar esse caminho de complementaridade.
Neste sentido, quais as suas “novas” regras e exigências? Por quem devem ser cumpridas?
(JLS) – Este regime é aplicável às denúncias em matéria de (i) contratação pública; (ii) mercados financeiros e prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo; (iii) segurança dos alimentos para consumo humano e animal, saúde animal e bem-estar animal; (iv) saúde pública; (v) proteção da privacidade e dos dados pessoais e segurança da rede e dos sistemas de informação; (vi) criminalidade violenta e organizada, entre outras. No entanto, e tendo em conta, até, aquilo que é o espectro largo de entidades obrigadas no âmbito desta nova Lei, parece ser claro que esses canais de denúncia interna podem, no limite, ser também utilizados para denunciar quaisquer outros âmbitos temáticos tradicionais de denúncia, naquilo que é o espectro normal de atividade de uma empresa, desde que possam constituir comportamentos contra legem. Para efetuar a denúncia, a lei prevê a existência de canais internos, canais externos (geridos pelas autoridades competentes e supervisoras) e mecanismos de divulgação pública. Foquemo-nos nos canais de denúncia internos uma vez que constituem a face mais visível de preocupação para as respetivas entidades obrigadas. Os canais internos de denúncia são obrigatórios para as entidades do setor privado e do setor público que empreguem 50 ou mais trabalhadores e ainda para as pessoas coletivas que desenvolvam a sua atividade nos domínios dos serviços, produtos e mercados financeiros e prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (‘’entidades obrigadas’’). Ficam, porém, excluídas desta obrigação as autarquias locais que, não obstante empregarem 50 ou mais trabalhadores, tenham menos de 10.000 habitantes. Os canais de denúncia interna têm de obedecer a determinados requisitos: (i) têm de garantir a apresentação e o seguimento seguros de denúncias, a fim de garantir a exaustividade, integridade e conservação da denúncia; (ii) têm de assegurar a confidencialidade da identidade ou o anonimato dos denunciantes e a confidencialidade da identidade de terceiros mencionados na denúncia; e (iii) têm de impedir o acesso de pessoas não autorizadas.
Em que medida esta lei afetará as empresas? Porque é tão importante que as mesmas estejam alerta?
(JLS) – Estamos a falar de um conjunto muito transversal de empresas que se encontram obrigadas no âmbito desta Lei, pelo que o primeiro e mais óbvio impacto é, precisamente, esse: possibilitar que ambientes e organismos empresariais com realidades diametralmente diferentes, com características e obstáculos/desafios de crescimento diferenciados, e, sobretudo, com perfis também eles específicos, se possam ambientar e adaptar a toda a panóplia de obrigações que, agora, sobre si, irão impender. Depois, veja-se que essa panóplia é, em si mesma, um desafio constante e dinâmico. As entidades terão que construir os já mencionados canais de denúncia internos, com requisitos apertados, mas também terão que ter objetivos e mecanismos claros quanto a procedimentos de receção de denúncias, para o registo e conservação de denúncias e, sobretudo, para a proteção do denunciante. A face visível será, aqui, o regime contraordenacional consagrado, sendo que as entidades que violem alguma das obrigações referidas podem praticar i) contraordenações muito graves, puníveis com coimas de 1 000 € a 25 000 € ou de 10 000 € a 250 000 € consoante o agente seja uma pessoa singular ou coletiva; ou ii) contraordenações graves, puníveis com coimas de 500 € a 12 500 € ou de 1 000 € a 125 000 €, consoante o agente seja uma pessoa singular ou coletiva. Por isso, as entidades devem conhecer profundamente as obrigações decorrentes desta Lei e conformar, desejavelmente (a um nível de prevenção jurídica), os seus comportamentos.
Com esta nova lei, está proibida a prática de atos de retaliação contra o denunciante. A mesma enumera atos que, se praticados até dois anos após a denúncia ou a divulgação pública, se presumem constituir retaliação. Consideram este período suficiente?
(TM) – Este prazo, pese embora esteja expresso na lei, é evidente que a proteção do denunciante vai mais além. Ou seja, caso haja alguma retaliação por parte de uma entidade patronal relativamente a um trabalhador, este poderá sempre agir contra a empresa com outras ferramentas, como seja o caso da denuncia de assédio (bulling), que possibilita o acionamento da apresentação da respetiva queixa, numa primeira fase, a nível interno, com obrigação das empresas em proceder a um inquérito prévio para averiguar da veracidade das acusações, quer mesmo pela via judicial, intentando a ação judicial competente.
Assim, as entidades do setor público e privado que empreguem 50 ou mais trabalhadores, passam a estar obrigadas a dispor de canais de denúncia interna a partir de 18 de junho de 2022. Podemos afirmar que, neste caso, as pequenas empresas foram esquecidas? Não faria também sentido que as mesmas estivessem englobadas?
(TM) – É uma excelente pergunta, até porque, devemos ter em consideração que o grosso do tecido empresarial português é constituído quase exclusivamente por pequenas e médias empresas que não terão os ditos 50 trabalhadores. Aqui, julgo que terá que haver uma afinação por parte do legislador, fazendo a retificação da transposição da Diretiva para a realidade portuguesa. Até porque, nos procedimentos internos das empresas já há vários procedimentos que obrigam à implementação da confidencialidade, nomeadamente, os casos de assédio, mesmo os casos de procedimentos disciplinares em que as empresas são obrigadas em ter referidos os processos em sigilo, bem como todas as normas de proteção no âmbito de proteção de dados dos trabalhadores. Logo, existindo já à partida várias obrigações de confidencialidade ao nível de Recursos Humanos, estamos perante uma oportunidade única de aproveitar o canal de denúncia aqui em apreço para o aplicar às questões elencadas. Ainda, é preciso não esquecer que a questão de fundo que aqui estamos a falar (a denuncia) não tem, nem pode ter um número certo de trabalhadores. Porque é que se aplica só a empresas com 50 trabalhadores? Então e as empresas que têm 49 trabalhadores? E as empresas que têm um número mais reduzido de trabalhadores, mas que porventura lidam com matérias mais sensíveis do que por exemplo fábricas com um grande número de trabalhadores? Aqui o legislador deverá ter a oportunidade de retificar esta questão, abrangendo, de facto, toda e qualquer relação laboral de forma mais lata.
Por fim, que consequências/impactos a médio e longo prazo esta lei poderá ter no contexto português?
(JLS) – Esta Lei insere-se num esforço mais profundo de combate à criminalidade económica que, sucintamente, já caracterizámos. Ainda assim, o que resulta deste novo quadro legal relaciona-se com a necessidade premente de uma harmonização entre os ditos regimes setoriais, diminuindo as diferenças existentes que possam dificultam o seu estudo, desenvolvimento e a sua operacionalização. No fundo, e em contravenção com aquilo que é um adn hiperlegislativo português de quase transposição acrítica de instrumentos de Direito Internacional e da União Europeia, com possíveis sobreposições assinaláveis em relação a diplomas nacionais ou – o que é mais grave – com soluções legislativas opostas, torna-se urgente encarar estes novos instrumentos legislativos como um contributo de mudança de paradigma de organização nas entidades obrigadas. Com esse quadro em mente, a Lei de Whistleblowing desempenha um papel importante na sedimentação de uma esfera de direitos (e correlatos deveres, é certo) dos vários intervenientes numa realidade empresarial ou institucional, permitindo-lhes ser (também) agentes de mudança no processo de denúncias de comportamentos violadores da lei, apostando, concomitantemente, na sua proteção de espectro total. É mais um passo a uma mudança que se pretende total de consagração de uma cultura de compliance nas próprias instituições.
Vide (i) Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, transpõe parcialmente as Diretivas 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho; (ii) Decreto-Lei n.º 109-E/2021 de 9 de dezembro, que cria o Mecanismo Nacional Anticorrupção e o regime de geral de prevenção da corrupção; (iii) A Lei n.º 93/2021, consagra o regime geral de proteção de denunciantes de infrações, através da transposição da Diretiva de Whistleblowing.