“Existe um Ciclo Urbano da Água que é necessário Conhecer e Valorizar”

Vera Eiró, Presidente do Conselho de Administração da ERSAR, revelou à Revista Pontos de Vista qual tem vindo a ser o trabalho da entidade no sentido de, diariamente, promover a qualidade de um bem tão precioso a toda a sociedade: a água. Para além disso, confidenciou ainda os maiores desafios que o setor enfrenta. Fique a par.

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A ERSAR tem por missão a regulação e a supervisão dos setores de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos sólidos urbanos, incluindo o exercício de funções de autoridade competente para a coordenação e a fiscalização do regime da qualidade da água para consumo humano. Como tem vindo a ser o concretizar da mesma até ao momento?
A ERSAR visa assegurar, por um lado, a garantia e o controlo da qualidade dos serviços públicos prestados nos setores que regula (abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos sólidos urbanos) e, por outro, a supervisão dos preços praticados, promovendo a acessibilidade física e económica desses mesmos serviços. Tem ainda por missão procurar garantir condições de igualdade e transparência no acesso e no exercício das atividades que regula bem como consolidar um efetivo direito à informação geral sobre o setor e sobre cada uma das entidades gestoras (que operam no terreno). Conforme permitem os seus estatutos, e com o intuito de concretizar a sua missão, a ERSAR assenta a sua atuação num modelo de regulação com dois grandes planos de intervenção: a regulação estrutural dos setores regulados e a regulação comportamental das entidades gestoras. A regulação estrutural dos setores inclui contribuir, por exemplo, para a legislação do setor e para a clarificação das regras dos setores. Inclui ainda a divulgação da informação e a capacitação das entidades gestoras e demais intervenientes nos setores. Neste âmbito compete igualmente à ERSAR elaborar e aprovar regulamentos no quadro das respetivas atribuições. A regulação comportamental das entidades gestoras inclui o acompanhamento (a monitorização legal e contratual) das entidades gestoras, a regulação económica, a regulação da qualidade do serviço e a regulação da qualidade da água para consumo humano. A ERSAR tem poderes de autoridade e alguns poderes sancionatórios que a ajudam a cumprir a sua missão e que incluem a realização de ações de inspeção e de auditoria, iniciar processos de natureza contraordenacional e aplicar as coimas correspondentes. A missão da ERSAR é complexa e difícil. Há ainda um longo caminho a percorrer – e estamos numa altura de grandes desafios nos setores que regulamos – mas o caminho recente destes setores em Portugal (e o que a regulação tem feito neste domínio) tornam Portugal num dos Estados-Membros da União Europeia que melhor tem evoluído nestes setores nas últimas três décadas.

Como referiu, a ERSAR tem por incumbência assegurar as condições de igualdade e transparência no acesso e no exercício da atividade de serviço de águas e resíduos e nas respetivas relações contratuais, bem como consolidar um efetivo direito à informação geral sobre o setor. Neste sentido, o que é assegurado?
Não dispondo do poder de aprovar “leis”, procuramos contribuir para a clarificação das regras de funcionamento dos serviços através de propostas de legislação e da emissão de regulamentos e recomendações. Em segundo lugar, a ERSAR acompanha o “ciclo de vida” das entidades que regula: desde o momento da criação de novos sistemas e/ou a sua reconfiguração, da seleção da entidade gestora e da contratualização do serviço, incluindo o acompanhamento da execução dos respetivos contratos bem como a sua extinção. Esta monitorização inclui a emissão de pareceres prévios à tomada das principais decisões sobre a prestação dos serviços (nomeadamente sobre os concursos para as concessões a privados ou sobre a mudança do modelo de gestão) ou a realização de auditorias. No que toca ao direito à informação (informação completa e clara), a ERSAR publica regularmente informação atualizada no seu sítio público www.ersar.pt, destacando-se as seções “Setor”, “Consumidor”, “Notícias” e o “O que fazemos” – em que é possível consultar pareceres, regulamentos, recomendações e consultas públicas, entre outros documentos relevantes. No âmbito dos ciclos regulatórios anuais, a ERSAR recolhe um grande conjunto de informação que lhe é submetida pelas entidades gestoras. Após validação e processamento, estas informações são analisadas e divulgadas anualmente promovendo-se assim a acessibilidade e a transparência. Neste contexto, salienta-se, a publicação do Relatório Anual do Setor das Águas e Resíduos (RASARP) constituído por dois volumes. O volume 1 – Caracterização do setor de águas e resíduos, sintetiza a informação mais relevante sobre os serviços e evolução do setor, dos seus principais intervenientes e principais números, apresenta os principais resultados da qualidade do serviço prestado ao utilizador, disponibilizando-se a avaliação comparada (benchmarking) do desempenho das entidades gestoras, a análise económica e financeira dos serviços, a análise da relação das entidades gestoras com os utilizadores e os principais resultados no que respeita à monitorização legal e contratual das entidades gestoras. Trata-se talvez do maior e melhor repositório de informação sobre estes serviços que é prontamente disponibilizado pela ERSAR a todos os interessados – desde a academia, até associações representativas do setor ou outros intervenientes públicos. O Volume 2 – Controlo da qualidade da água para consumo humano, sintetiza a informação mais relevante relativa à qualidade da água fornecida aos utilizadores pelas entidades gestoras. A ERSAR também desenvolveu, para alguns dados mais relevantes, uma aplicação móvel num formato interativo, a App ERSAR, que permite a qualquer pessoa conhecer a caracterização dos serviços em todas as áreas de Portugal Continental incluindo, por exemplo, o grau de água segura na torneira.

As atividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de caráter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança coletiva das populações, às atividades económicas e à proteção do ambiente. Em todas estas vertentes, como se encontra atualmente o setor?
Em termos da qualidade da água para consumo humano, há muitos anos que se atingiu o valor de 99% de “água segura”, um valor considerado de excelência e que coloca Portugal ao nível dos mais avançados da UE. O indicador água segura, que pondera o número de análises exigidas pela legislação em vigor – mais de meio milhão de análises realizadas em 2020 – e o cumprimento dos limites da qualidade – manteve-se nos 99 %, sustentado pelas metas legais atuais e por um acompanhamento rigoroso e coordenado dos diferentes atores no processo tais como entidades gestoras, a ERSAR, as autoridades de saúde e os laboratórios certificados. Em termos da qualidade do serviço prestado, continua a assistir-se ao aumento da percentagem de indicadores com avaliação positiva e mediana nos três serviços regulados pela ERSAR. Verificamos, porém, que os valores médios que Portugal apresenta às vezes escondem realidades muito diferentes – entre entidades gestoras de grande dimensão e com bons indicadores e outras, de muito menor dimensão, e que não apresentam tão bons resultados. A “acessibilidade económica” em todos os serviços continua a ser o indicador que, em média e de forma perentória, se destaca pela positiva. Este indicador, porém, é frequentemente acompanhado por maus resultados no indicador da “cobertura de gastos”. Noutras palavras, temos muitas situações em que o preço da água é mais baixo do que o custo real do serviço e, por isso mesmo, se apresenta “barato” e por isso economicamente muito acessível. É também nestes casos que se detetam, com frequência, maiores ineficiências do serviço que se prendem, por exemplo, com níveis muito elevados de água não faturada, na sua maioria devido a perdas reais. Seja como for, Portugal é um país muito diverso no seu território e, por isso mesmo, vale a pena ver com detalhe os números, município a município, porque as médias têm de ser analisadas com pormenor. É isso que a ERSAR disponibiliza anualmente com a sua atividade e, claro, contando com o contributo imprescindível das suas entidades reguladas.

Certo é, o setor das águas subdivide-se em dois serviços distintos: o de abastecimento de água para consumo humano e o de saneamento de águas residuais urbanas. Quais diria que são os maiores desafios que em ambos os serviços, emergem em Portugal?
A atividade de abastecimento público de água compreende a captação, o tratamento, a elevação, o transporte, o armazenamento, a distribuição e a utilização da água. Já a atividade de saneamento de águas residuais urbanas (ou, melhor dizendo, de gestão de águas residuais urbanas) compreende a descarga, a drenagem, a elevação, o transporte e o tratamento das águas residuais de origem urbana, bem como a sua rejeição no meio hídrico. Como tal, o saneamento é fundamental para garantir a salvaguarda da qualidade das massas de água (aqui se incluindo não só água doce como também os oceanos), com especial enfoque, considerando a missão da ERSAR, para a fase de captação para consumo humano, numa lógica de ciclo urbano da água. O acesso a água potável (em quantidade e qualidade) é um dos desafios mais relevantes nas próximas décadas, considerando as transformações do território, as alterações climáticas, o crescimento populacional e a expansão das cidades, as pressões nos recursos hídricos e os riscos naturais ou provocados a que se encontram sujeitas as origens de água. Concretizando, os principais desafios que enfrentamos enquanto comunidade passam, em primeiro lugar, por sermos capazes de garantir a segurança da água, em duas vertentes. Na vertente safety, é necessário salvaguardar a qualidade da água para diferentes fins como consumo humano, rega, fins industriais ou usos recreativos, assim como prevenir e ter capacidade de resposta para situações de emergência decorrentes de acidentes derivados de causas naturais, como, por exemplo, eventos climáticos extremos. Neste âmbito, existe uma metodologia de avaliação do risco que integra o quadro regulamentar do controlo da qualidade da água destinada ao consumo humano e que a ERSAR (e as entidades reguladas) está agora a implementar. Na vertente security, trata-se de prevenir incidentes como ações humanas intencionais para afetar negativamente a qualidade da água e a capacidade de a fazer chegar continuamente às torneiras. Em segundo lugar, outro grande desafio que temos prende-se com o uso eficiente da água, enquanto medida de gestão de escassez, que implica uma abordagem integrada e, claro, a implementação de medidas para reduzir perdas, diminuir a vulnerabilidade perante situações de escassez e assegurar a sustentabilidade económica e financeira dos operadores, para permitir a realização dos investimentos necessários na reabilitação das infraestruturas. Numa perspetiva de economia circular, e dando sempre prioridade à eficiência, deve ainda procurar-se origens de água alternativas. Em contexto de escassez de recursos hídricos, a água residual tratada pode, por exemplo, ser sujeita a um tratamento adicional de afinação, tornando-se apta a ser utilizada em usos não potáveis como a regra agrícola, a rega paisagística (espaços verdes e campos desportivos), lavagem de ruas e de contentores, combate a incêndios, entre outros.

Afirma-se que Portugal vive o ano mais seco desde 1931. Por esse motivo preparam-se novas campanhas de sensibilização para um uso mais eficiente e consciente da água. Na sua perspetiva, quão importante são estas campanhas na sociedade?
Ainda que a maior parcela de água seja destinada a fins agrícolas ou industriais e a parcela de água destinada a consumo humano seja comparativamente reduzida (numa proporção aproximada de 80%-20%), as alterações climáticas obrigam a uma urgente adaptação de hábitos sociais. Assim, campanhas de sensibilização para um uso mais eficiente e consciente da água são fundamentais. Temos, em comunidade, de valorizar mais a água que bebemos e o serviço de que beneficiamos. Apesar de darmos a água como um bem adquirido, por se tratar de um bem básico, existe todo um sistema nos bastidores que funciona como um ciclo interdependente – o ciclo urbano da água. Este ciclo necessita de visibilidade para poder ser reconhecido e valorizado. É muito importante, a este propósito, que as tarifas reflitam o custo real do serviço e que se garanta o cumprimento do princípio do utilizador pagador.

Ainda assim, não se nega o olhar atento que cada vez mais a sociedade tem para com a sustentabilidade. É legítimo afirmar que temas como este são hoje uma prioridade na vida das pessoas?
Os consumidores estão mais conscientes e exigentes sobre a origem dos bens e serviços que consomem e o destino que é dado a estes bens em fim de vida. Temas como comércio justo (fair trade), proteção do ambiente, alterações climáticas e economia circular, têm estado na ordem do dia. Gerir a escassez de água, e valorizar adequadamente este bem essencial, implica adotar comportamentos coletivos que passam, por exemplo, por controlar perdas em sistemas de abastecimento, por dispor de reservas hídricas, por garantir aos sistemas a necessária flexibilidade e resiliência, em caso de emergência, e a sua otimização energética. Mas também implica a adoção de comportamentos individuais (onde o contributo de cada um de nós pode fazer o muito do todo) e que passam por diminuir o consumo excessivo de água, valorizar o serviço e compreender a necessidade de o preço/tarifa ser suficiente para cobrir os custos reais do serviço (sempre de forma equitativa). Num cenário de escassez e de sustentabilidade é absolutamente fundamental reduzir as perdas de água nas redes e isso implica investimento e uma boa gestão/monitorização, mas esta questão deve ser encarada por todo o ecossistema das entidades que gerem o setor, a nível nacional e internacional e, claro, por cada um de nós enquanto parte da comunidade.

Como perspetiva o futuro onde a ERSAR se insere a médio/longo prazo e quão urgente é que todos, enquanto cidadãos, atentemos aos nossos atos de hoje, para um futuro melhor? Neste sentido, que mensagem de consciencialização gostaria de deixar à população?
Relativamente ao setor das águas, conforme referido acima, existe um ciclo urbano da água que é necessário conhecer e valorizar. Até que a água chegue com qualidade a nossas casas é necessário percorrer várias etapas e até que as águas residuais sejam devolvidas à natureza têm de ser tratadas de forma adequada. A água é um bem básico, mas escasso, que não pode ser desperdiçado pois a vida não existe sem água e não há nada que a substitua. Quer isto dizer que não conseguimos medir o seu valor (é infinito!). Mas a verdade é que conseguimos contabilizar o seu preço (ou seja, o custo do serviço) e esse preço deve ser suportado, enquanto regra que pode ter exceções justificadas, por quem beneficia deste serviço, através de tarifas adequadas. Relativamente ao setor dos resíduos urbanos, este setor enfrenta um conjunto vasto de desafios importantes, destacando-se a necessidade de se alcançar os atuais objetivos das diretivas do Pacote Economia Circular, que vão obrigar a uma mudança do paradigma deste setor até 2035. O alcance destes objetivos não será possível sem a participação de todos os intervenientes e dos cidadãos desde o primeiro momento, ou seja, no momento em que os diferentes tipos de resíduos – embalagens de plástico, metal, papel, cartão e vidro, bem como biorresíduos – são depositados no contentor. Os resíduos têm valor e separá-los no momento de deposição é imperativo para que se evite a deposição em aterro ou a inceneração e para que possam ser reaproveitados da melhor forma e ser integrados no ciclo produtivo, extraindo-se materiais e energia, numa lógica de economia circular. A ERSAR, enquanto entidade pública, reguladora, autónoma e independente, defende o diálogo eficaz com todos os agentes, públicos e privados, a nível local, regional e nacional, envolvendo sempre os utilizadores e os consumidores em geral, na identificação das melhores soluções de eficiência hídrica e de proteção do ambiente.

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Revista Pontos de Vista Edição 129

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