O Supremo Tribunal dos Estados Unidos revogou a decisão histórica que há 50 anos legalizou a interrupção voluntária da gravidez. Como analisa esta alteração?O Supremo Tribunal dos Estados Unidos não só reverteu um precedente de quase 50 anos como relegou à vontade e ideologias de políticos a decisão mais íntima e pessoal que uma pessoa pode tomar, colocando em causa as liberdades fundamentais das mulheres. Segundo entendi, esta alteração não torna o aborto ilegal, mas significa que não é um direito constitucional e, assim, cada Estado pode legislar como bem lhe aprouver, abrindo portas para o pior, ou seja, que os estados mais conservadores tornem a legislação mais dura, com molduras penais mais pesadas para o aborto ilegal. Por outro lado, a restrição ao aborto pode levar muitas mulheres e jovens adolescentes a efetuar procedimentos inseguros sem a menor dignidade, violando os seus direitos e aumentando a mortalidade materna. O aborto ilegal não previne abortos, previne abortos seguros. Importa lembrar que vários são os cenários que podem levar à interrupção voluntária da gravidez, nomeadamente em casos de perigo para a saúde física e psíquica da mulher, em casos de malformação fetal, quando a gravidez resultou de uma violação, entre outros. Considero que as decisões fundamentais de saúde das mulheres devem ser tomadas por elas, com o apoio dos que lhe são próximos e de médicos e não ditadas por políticos. Esta decisão resulta na redução dos direitos das mulheres e do seu estatuto enquanto cidadãs livres e iguais. É, sem dúvida, um recuo inominável nos direitos das mulheres.
Acredita que esta restrição ao aborto terá impacto no mundo? De que forma?
Acredito que a decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos está a ter impacto por todo o mundo patente, por exemplo, com o afastamento dos EUA dos seus principais aliados, no que diz respeito aos cuidados de saúde reprodutiva. A revogação da lei que permitia o direito à interrupção voluntária da gravidez gerou e continua a gerar protestos por todo o mundo, colocando esta temátiva novamente em cima da mesa. Quero acreditar que a maioria dos líderes mundiais considera esta questão um retrocesso civilizacional, mas preocupa-me que este lamentável recuo na proteção do direito à interrupção voluntária da gravidez, envie a mensagem alarmante de que outros governos podem negar os direitos de mulheres, adolescentes e meninas, restringindo os direitos à interrupção involuntária da gravidez, saúde e autonomia corporal. Acho que países com democracias mais frágeis e visões mais conservadoras podem ver nesta decisão um motivo ou legitimação para tentarem reverter leis em vigor ou para tentar impedir a aprovação de novos enquadramentos legais.