“A OAM tem um papel importante porque tem um papel social marcadamente próprio no Equilíbrio da Aplicação do Direito”

A Revista Pontos de Vista teve o privilégio de conversar com Duarte Casimiro, Bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), que num discurso eloquente, levantou um pouco o «véu» do papel da OAM no que concerne à defesa dos profissionais de advocacia no país, assegurando que o papel da Ordem dos Advogados de Moçambique, entre outros, passa pela contínua dignificação do papel do Advogado e da defesa dos direitos do cidadão comum.

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Passam dois anos desde a tomada de posse como Bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM). Que balanço é possível fazer deste mandato e quais são os grandes e principais sucessos do mesmo até ao momento?

Embora seja suspeito para o fazer, o balanço que faço deste mandato é bastante positivo tendo em consideração as adversidades que enfrentamos desde o primeiro momento, pois assumimos a Ordem num contexto de bastante incerteza promovido pela Covid-19, em que várias atividades, em particular o estágio profissional teve que ser suspenso.

Em termos de principais sucessos é a descentralização da Ordem dos Advogados de Moçambique, pois foram instalados mais nove Conselhos Provinciais e a introdução de vários instrumentos de articulação e funcionamento dos mesmos, permitido que os serviços da OAM estejam em todas as capitais provinciais do país.

É missão da OAM contribuir de uma forma mais eficiente e eficaz para a consolidação do Estado de Direito Democrático. Procedendo a uma breve análise, como se encontra o panorama atual da área em Moçambique?

O Estado de Direito Democrático está em construção pois trata-se de uma nova forma de ser e estar e as instituições democráticas ainda se encontram em processo de consolidação. O facto de termos eleições gerais, livres e periódicas com os resultados aceites é um progresso quando comparado com outras democracias igualmente jovens. Entretanto questões como os mecanismos de prevenção de conflitos eleitorais, os procedimentos de participação publica na produção legislativa, e ainda a questão relativa ao contrapeso entre os poderes instituídos, continuam a ser desafios prementes que urgem obter uma abordagem que permitam acelerar o processo de consolidação do EDM.

Também é um propósito da OAM ser reconhecida como um parceiro estratégico do Estado. Quão importante é uma proteção e salvaguarda incisiva sobre a ordem jurídica nacional, as instituições democráticas, os direitos dos cidadãos e a promoção dos princípios de justiça social?

Desde o primeiro momento que temos estado em busca de aperfeiçoar a nossa relação de parceria com as instituições ligadas ao setor da Administração da Justiça em Moçambique, às vezes com avanços e outras com recuos.

A começar com o relacionamento que a OAM tem com a Assembleia Da República em que nos processos legislativos somos chamados a emitir pareceres sobre projetos de leis, com muito pouco tempo de antecedência.

Naturalmente que o fundo de tempo bastante reduzido para um projeto complexo e volumoso coloca em causa a nossa prestação de exercer as nossas atribuições no que diz respeito a contribuição para o desenvolvimento da cultura jurídica, para o conhecimento e aperfeiçoamento do Direito, ao pronunciar-se sobre os projetos de diplomas legais que interessam ao exercício da advocacia, ao foro judicial e à investigação criminal.

Sem pretender buscar protagonismos dentre os demais autores no processo de construção do EDM, a OAM tem um papel importante, não só por grande parte das vezes ter que intervir em situações de normas aprovadas com graves e claras violações à sistemática do Direito pátrio, principalmente porque ela tem um papel social marcadamente próprio no equilíbrio da aplicação do Direito.

Sabemos que o mundo e, consequentemente, os setores de atividade, estão em constante evolução. Com uma visão centrada no Direito atual – e face ao desenvolvimento do mercado – qual diria que é a importância da Advocacia na sociedade?

A advocacia é bastante relevante para trazer segurança nos negócios realizados entre particulares, e para trazer um equilíbrio e proteção do cidadão em relação aos poderes públicos.

Num contexto em que Moçambique se posiciona nos grandes mercados internacionais, nomeadamente, do petróleo e gás, é importante que os advogados estejam atentos às dinâmicas sociais, garantindo, por exemplo o reassentamento condigno à população afetada pela implementação dos mega projetos, e ao mesmo tempo garantido que as pequenas e médias empresas tenham proteção contra as maiores.

Porque se avizinham as eleições gerais é importante que o Advogado participe quer na divulgação dos pacotes eleitorais, formando os atores do processo eleitoral, como observador eleitoral, bem assim esteja disponível para, havendo necessidade participar na reposição da justiça em caso de eventuais situações de fraude, para garantir a estabilidade e paz sociais.

Uma das muitas razões para a evolução do mundo prende-se com a era digital que vivemos. Como analisa a aposta na inovação e tecnologia por parte da OAM e da justiça em Moçambique e de que forma esta modernidade poderá ser positiva para o mercado e para o país?

A OAM está a par da evolução digital está a contribuir como membro da comissão da implementação do sistema judicial eletrónico em Moçambique.

Com a criação do sistema informático para a tramitação do processo judicial, e garantir a interoperabilidade entre os sistemas dos órgãos do Setor da Justiça (Tribunais, Conselho Constitucional, Ministério Público, Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, Ministério do Interior – Serviço Nacional de Investigação Criminal e Ordem dos Advogados de Moçambique), e com os outros órgãos auxiliares da Administração da Justiça, haverá uma maior celeridade processual e redução de custos.

Para a OAM haverá mais vantagens para o combate à procuradoria ilícita, pois o acesso ao sistema por parte dos advogados estará condicionado à sua situação regular junto à OAM.

Para os advogados irá permitir uma maior flexibilidade na medida em que grande parte dos atos que hoje devem ser praticados presencialmente, como a submissão de expedientes e participação em audiências, poderão passar a ser praticados na comodidade dos seus escritórios, reduzindo os custos de deslocação e permitindo um acesso à outras áreas geográficas que hoje constituem um grande impedimento para o crescimento dos escritórios.

Portugal e Moçambique têm uma relação única no que diz respeito às relações de cooperação entre as instituições do poder jurídico com sistemas bastante próximos e com afinidade nos laços culturais. Considera que Portugal e Moçambique são uma referência global do desenvolvimento do Direito, da maturidade da jurisprudência, de matérias de gestão processual e da legislação? Por que motivos?

Poderia dizer que sim há alguns anos, no entanto, do lado de Portugal tem havido uma grande influência do direito Europeu no que diz respeito à legislação e Moçambique também tem estado a ter muito influência estrangeira na produção legislativa, o que coloca em causa a harmonia do sistema romano germânico.

A indisponibilidade de jurisprudência atualizada e de forma gratuita em Moçambique é um dos motivos que não nos permite afirmar que seja uma referência global.

Qual deverá ser (e é) o papel da OAM na promoção da ligação com Portugal e outros países de interesse?

A OAM tem um grande interesse na promoção da ligação com Portugal tanto mais que parte dos escritórios em Moçambique são com parceiros portugueses e os advogados estrageiros inscritos na OAM são igualmente portugueses.

Estamos interessados em melhorar este relacionamento de modo a que possa ser possível moçambicanos advogar em Portugal assim como portugueses advogar em Moçambique.

Este intercâmbio tem sido mais fácil na área de arbitragem internacional, em parte através da formação em que a OAM já organizou dois cursos que contaram com formadores portugueses.

A verdade que é que Moçambique demonstrou ter capacidade de resiliência económica em tempos de grandes desafios. Nestes mesmos tempos e até atualmente, qual é a importância do Advogado para as empresas lusas e outras que se pretendem consolidar no mercado moçambicano?

Para as empresas que pretendem se consolidar no mercado moçambicano ter a assessoria de um advogado garante em primeiro lugar o cumprimento dos aspetos legais para evitar ter prejuízos financeiros, devido às multas por incumprimento da legislação moçambicana.

Quem investe seu capital pretende acima de tudo segurança de que não irá perder o seu investimento, para o efeito, a tramitação de aspetos empresariais e laborais tem sido um grande desafio para essas empresas, e com a ajuda de advogados esse processo para além de seguro, permite uma boa reputação para a empresa junto dos clientes, fornecedores e outros parceiros.

O Advogado é o profissional que defende o Direito – o operador desta ciência tem uma função importantíssima na sociedade. Como se encontra hoje a formação em Advocacia em Moçambique?

A formação em Advocacia em Moçambique continua a enfrentar desafios primeiro pela qualidade de ensino superior em Direito, em parte causado pelo número de novas universidades que vão surgindo em Moçambique, algumas sem um corpo docente e administrativo capaz de garantir uma boa qualidade dos seus estudantes.

A OAM apenas exige o certificado de habilitações literárias em Direito, não distingue em função das universidades de proveniência.

O resultado é que o estágio tem que se transformar numa espécie de segunda licenciatura, revendo matérias já lecionadas ao nível da universidade, principalmente nas disciplinas processuais, pois há que garantir um mínimo de qualidade nos serviços que os advogados irão prestar à sociedade.

Era nossa pretensão que o período de estágio, principalmente a primeira fase, fosse mais virado à aspetos deontológicos da profissão, no entanto há que reconhecer a deficiência na formação de base e garantir o nivelamento de todos estagiários.

Aprender bem e com os melhores, poderá ser a chave para um Direito mais fortalecido? Qual diria que é o valor da ligação entre o jovem Advogado e outros mais experientes?

Os jovens advogados têm estado integrados em várias atividades desenvolvidas pela Ordem, inclusive existe uma comissão dentro da OAM, a Área de Promoção e Engajamento dos Jovens Advogados (APEJA) para garantir uma maior integração dos jovens advogados.

Os escritórios de advogados têm assumido um papel preponderante neste sentido, admitido estagiários muitos deles remunerados.

Para permitir que estes se jovens se consolidem quer quotas, nas formações, e em outras atividades desenvolvidas pela Ordem em que há necessidade de pagamento, estes sempre têm uma comparticipação bonificada para permitir que possam fazer parte das discussões e propor soluções.

Face a todos os temas anteriormente mencionados, no domínio da Advocacia em Moçambique, quais são, para si, os desafios mais prementes? Na sua perspetiva, o que urge melhorar?

São vários desafios que poderíamos elencar, no entanto podemos por uma questão de prioridade elencar oito:

Fortalecer os mecanismos para o cumprimento das atribuições da OAM na defesa do Estado de Direito Democrático, mais precisamente atribuindo à OAM a legitimidade constitucional para requerer a verificação da constitucionalidade das normas. Sem essa competência a OAM fica com o seu raio de ação bastante limitado, pois está sujeita a juntar mais duas mil assinaturas para poder requerer a verificação da constitucionalidade de uma norma.

Melhorar o processo de formação do advogado, que poderia ser em articulação com o Centro de Formação Jurídico Judiciário, com vista a maximizar os recursos existentes, principalmente o corpo de docentes, na medida em que são os mesmos docentes que tem que dar as formações no Centro e depois o mesmo conteúdo aos estagiários da OAM. Neste sentido, acredito que seria possível que o primeiro período de estágio na OAM fosse combinado com a formação dos magistrados.

Reforçar o combate à procuradoria ilícita, quer por parte de pessoas que não estejam inscritas na OAM, quer por parte de advogados inscritos com as quotas não regularizadas.

Melhorar a sustentabilidade financeira da OAM, eventualmente com a atualização das quotas que não são revistas há muito tempo.

Revisão dos Estatutos para que o exercício da advocacia possa se adequar às tendências no Século XXI.

Consolidar a descentralização da Ordem dos Advogados garantido que os Conselhos Provinciais tenham boas condições de trabalho, tendo por exemplo uma área de trabalho para os advogados, e para o funcionamento do Instituto de Acesso à Justiça (IAJ) promovendo desta forma um maior acesso ao Direito e à Justiça pelos cidadãos carenciados.

Melhorar a articulação com as demais instituições, em particular com a Assembleia da República, no processo de elaboração legislativa.

Reforçar a defesa das prerrogativas dos advogados, penalizando a obstrução do exercício das penas, pois acredito que apenas desta forma podemos o desrespeito que temos estado a assistir principalmente pela polícia.

Já do ponto de vista da OAM, de que forma irá continuar a defender o Estado de Direito Democrático, os direitos e liberdades fundamentais e participar na boa administração da Justiça, neste mandato que ainda não terminou?

Ao longo deste mandato a OAM já usou de vários procedimentos no processo de defesa do Estado de Direito Democrático, desde diálogos com as partes interessadas, comunicados de repúdio, emissão de pareceres legislativos, publicação de Relatórios de Direitos Humanos, constituição em assistente em processos de interesse público, requerimentos junto ao Conselho Constitucional para declaração de inconstitucionalidade de normas de constitucionalidade duvidosa, ações coletivas para defesa de interesses difusos como reassentamento da população abrangida pelos mega projetos.

Ao longo desde mandato a OAM irá reforçar todos estes mecanismos, e outros que forem oportunos para a defesa do Estado de Direito Democrático, sempre primando pela via extrajudicial e judicial com a menor mediatização possível das ações, quando a mediatização não traga qualquer benefício para a resolução dos conflitos.

Que mensagem gostaria de deixar a todo o universo de profissionais do Direito em Moçambique e, ainda, ao cidadão comum?

Para os profissionais do direito em Moçambique que se juntem à Ordem dos Advogados de Moçambique na defesa do Estado de Direito Democrático porque todas as mãos contam para esse desafio.

Ao cidadão comum que continue confiando os processos nos advogados devidamente inscritos na OAM e no sistema de administração da Justiça evitando sempre a tentativa de fazer justiça com as próprias mão.