“Orientamo-nos por valores de uma hospitalidade de minúcia e detalhe”

Nesta entrevista falamos da visão feminina sobre o universo do turismo e da hotelaria – falamos de alguém que sabe e vive, de perto, todas as questões associadas ao mesmo. Falamos de Catarina Varão, por um lado Diretora Geral do projeto Cabanas da Viscondessa, que oferece uma experiência única nos Açores e, por outro, Fundadora da empresa TH2, que dispõe de serviços de consultoria, formação e imagem em turismo e hotelaria. Conheça tudo.

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A Catarina Varão tem já um longo caminho percorrido no que concerne à área da Hotelaria e do Turismo. Para melhor entender, como surgiu a paixão por estes setores e todos os seus envolventes?
A culpa é dos meus pais. Há sempre uma influência na educação não há? Sou açoriana, de São Miguel, e recordo com carinho como cada vez que havia um aniversário ou uma celebração especial na nossa família, o meu pai reservava um hotel para passarmos a noite, mesmo que implicasse dormir a escassos cinco kms de casa. E conhecemos muitos hotéis da ilha juntos desta forma. Desde miúda lembro-me da excitação de entrar num Hall de uma receção de hotel onde se ouvia um piano, de ansiar subir ao quarto para descobrir os amenities, as estações de rádio na mesinha de cabeceira e o pequeno-almoço na manhã seguinte. Era um encantamento tremendo. Hoje, valorizo poder dormir em casa!
Foi em Gestão de Empresas Turísticas que me licenciei no Instituto de Novas Profissões onde mais tarde fui professora, pós-graduei-me em Desenvolvimento de Produtos Turísticos no ESHTE e em Espanha, na Universidade Europeia de Madrid tirei o mestrado em Direção de Hotéis com Carácter que me inspirou a desenvolver um Mini MBA com a nossa empresa de formação certificada DGERT, a TH2 e impulsionou o lançamento do clube hoteleiro Unique Stays, já que os mentores do mestrado eram fundadores da cadeia Rústica. Está em curso um doutoramento em geografia com a Universidade do Minho.

Estas indústrias são extremamente amplas, pelo que é especialista em consultoria, formação, marketing, entre outros. Que elementos pessoais e profissionais tem depositado nas suas experiências profissionais?
Trabalhei em agências de viagens e hotéis onde percebi que não havia espaço para participar em todos os seminários, congressos, feiras e conferências que são tão importantes e nada mais fazem que constituir a carreira dos profissionais do sector. Foi mais tarde com a consultora Concept4Hotels que compreendi que havia no mercado procura para o acompanhamento de lançamento de projetos Turísticos no âmbito mais lato que apenas o que  Plano de Negócios confere.
Como diria um professor meu- Carlos Costa, é realmente uma “constelação de sectores [o turismo]”, não apenas um setor. E no que toca a TH2, empresa com 16 anos, compreendemos que um Plano de Negócios muitas vezes é desenvolvido por empresas que tanto o realizam um para um hotel como para uma oficina automóvel. No nosso ramo a especialização e conhecimento dos desafios dos serviços turísticos são fulcrais para o entendimento da vocação de cada projeto: que vontades, que limitações, que capacidade, qual a diferenciação e força de cada nova ideia? Por isso trabalhamos com o mundo financeiro, não fosse o partner sócio técnico oficial de contas (e solicitador, licenciado em Direito). Em visitas a hotéis e no trabalho de campo aprendi sobre decoração junto de arquitetos e criativos. Não perdemos um evento para que possamos mais que seguir tendências, criá-las… e diria mesmo antecipá-las, com a consciência dos riscos na operação que envolve ser original e com uma bolsa de bons contactos e estratégias no que toca à projeção e venda. Isto implica ter uma agenda sempre bem coordenada com o que se vai passar e com o volume de trabalho pessoal e da empresa.
É muito importante ser criativo e rodearmo-nos de criativos, mas sobretudo de fazedores. Interpretar modas e compreender se se coadunam com a  capacidade das equipas e com a realidade de cada destino para então fazer a triagem e orientação de cada novo projeto. Por isso há muita sociologia e psicologia (noções!) que são importantes nesse trabalho dos recursos humanos- quer na capacitação e gestão de equipas, quer na interpretação de valências dos hoteleiros aquando de um novo trabalho.
Atraímos o que acreditamos e a nossa forma de estar serve de íman de clientes e contactos. Na nossa empresa preocupações meio-ambientais são por exemplo uma forma de estilizar e “edificar” hotéis ditos de charme: do foco aos materiais naturais ao maior recurso possível ao local representam por si só esforços e cedências na arquitetura e conceção que muitos hoteleiros não estão dispostos. É nessa forma de estar que implementamos e orientamos os projetos onde trabalhamos – métodos de reciclagem e re-uso, práticas de inclusão e sustentabilidade que resultam em serviços originais, tarefas que acabam por representar bem estar mental e melhoria na saúde das equipas e consequente mentalidade de valores a passar ao cliente final. O envolvimento é chave daí a nossa presença na operação e na gestão. Somos hoteleiros de vocação e curadores de hospitalidade de excelência de profissão.

Atualmente é Diretora Geral do projeto Cabanas da Viscondessa, que oferece uma experiência única nos Açores. Além da sua localização, quão especial é este alojamento carregado de história?
A Quinta da Bacelada é uma propriedade com uma pequena ribeira em parte da mesma (a Ribeira do Nabo) situada na zona alta da Urzelina, designado Caminho de Cima. Um terreno vasto que outrora tinha laranjeiras e vinhas onde a Viscondessa Isabel Beatriz era a proprietária. Era uma benfeitora e empreendedora apoiando a fundação da Irmandade de Santa Casa das Velas ou Banda Filarmónica da Urzelina na ilha de São Jorge. Deixando-nos aí uma oportunidade de fazer uma vénia a esta empreendedora feminina. Os familiares da Viscondessa prestam-lhe homenagem com a edificação de 6 cabanas de madeira modernas mas luxuosas contando com vestígios da casa da propriedade onde hoje é a receção e espaço de estar dos apartamentos turísticos Cabanas da Viscondessa.
Em 2020 aquando da abertura das Cabanas da Viscondessa a TH2 apoiou com consultoria na gestão comercial e recursos humanos, sendo atualmente a entidade que explora e gere a mesma. Num destino turístico ainda em fase de consolidação como São Jorge com recursos limitadíssimos tem sido um desafio estar à altura do serviço para o qual este projeto merece ser projetado, sendo recorrentemente necessário mobilizar equipa da empresa-mãe para a ilha para o efeito. Estes desafios, a par da natural sazonalidade de qualquer empreendimento turístico, fortalecem a nossa estrutura e capacidade de resposta na antevisão de quebras de procura, de bens, nas quebras de serviço entre outras fragilidades sentidas em projetos em destinos remotos e não consolidados.

Além disso, é fundadora (e sonhadora) da empresa TH2. O mote da marca é “T de Turismo. H de Hotelaria e 2 para elevar os projetos ao quadrado, potenciá-los e otimizá-los”. O que quer disto dizer?
Significa que queremos contribuir para o sucesso dos projetos Turísticos e Hoteleiros. Acreditamos numa hotelaria de excelência, mas descomplicada  com foco em serviços que sejam proporcionados de forma autêntica por quem faz parte integrante desses projetos, ou seja de forma inata. São eles os hoteleiros (ou empreendedores) que recebem com gosto, que sentem vocação em agradar e surpreender convidados que são hóspedes ou empresários dispostos a desenvolver uma vocação hoteleira de topo.

No que diz respeito à sua carreira profissional, que mais-valias emergem destes projetos? De que forma estas duas atividades se complementam entre si?
Aprendizagem e mais aprendizagem. Este cruzamento da consultoria com a operação permite-nos ver de fora cada empreendimento com todo o potencial e  essência. Se por um lado desenhamos o seu conceito, na operação implementamos o seu carácter. Isto, dito de uma forma romântica. Na prática é uma ginástica esdrúxula que culmina na   satisfação de um cliente extasiado e surpreendido por um nível diferente de hotelaria-  cliente hoteleiro e cliente hóspede.
No que toca a minha carreira, as opções de direcionar a gestão da TH2 nos Açores não é despida de segundas intenções: além de ser açoriana tenho em curso um trabalho de doutoramento cuja tese se foca na identidade insular. E o trabalho de campo tem sido mais que muito! Embora com sede em Lisboa e muito trabalho de norte a sul no território nacional, os arquipélagos dos Açores e da Madeira são ora o trabalho, ora o estudo de caso, respetivamente.
A equipa TH2 promove a sua carreira como “partners” do negócio, onde nos envolvemos todos na operação por igual quer nas Cabanas da Viscondessa quer em outros alojamentos, bem como no “behind the scene” na gestão e outsourcing de marketing que desenvolvemos em hotéis e grupos hoteleiros com que trabalhamos.

Ser empreendedor, em Portugal e no mundo, é um desafio que, como se diz na gíria, costuma dar “dores de cabeça”. Mas, mais do que isso, uma mulher a sê-lo é uma questão, embora melhorada, ainda debatida pela desigualdade que persiste. Enquanto pessoa, mulher e profissional, como analisa esta questão?
Respondendo com outra analogia “é um mundo cão” e ainda há muito a percorrer mesmo entre equipas femininas. Ainda há por parte das equipas de mulheres um respeito diferenciado quando as chefias são masculinas e como se não houvesse travão na língua quando de uma mulher se trata. Os diretores hoteleiros dão-se com os diretores hoteleiros (salvo algumas exceções) mas reconhecem a habilidade feminina numa gestão de tarefas sensibilizada. As responsabilidade em casa com os filhos recaem maioritariamente em cima da mãe e isto é um problema, pois as funcionárias do sexo feminino confidenciam frequentemente a incapacidade de divisão justa da gestão do tempo dos filhos, resultando em frequentes ausências. Além disso é comum no mundo hoteleiro o casal trabalhar para a mesma entidade patronal e as faltas para assistência à família são mais frequentes na mulher que no homem e isto é um desequilíbrio.
Mas há líderes e empreendedoras no feminino, no mundo hoteleiro de muita garra, que muitas vezes adotam um estilo autoritário e até másculo para se fazerem respeitar, como se os cargos de liderança exigissem arrogância e prepotência. Acredito num estilo de liderança que lidera por exemplo, pelo envolvimento onde na maioria das vezes o caminho é muito mais sinuoso: caem empregados que confundem “à vontade, com à vontadinha”, deixam-se expostos os colaboradores que, não compreendendo o estilo de liderança, sentem-se perdidos quanto às suas responsabilidades e aí fica instantaneamente o filtro feito de quem é um bom profissional pró-ativo com espaço para ser ele próprio e reconhece esse bom chefe versus aquele que afinal era um “wanna-be” abusado e que se estendeu ao comprido pelo seu carácter (ou falta dele). Isto vem nos livros de Recursos Humanos- esta dificuldade em gerir pessoas e equipas em particular na área dos serviços como é a hotelaria. Em Portugal a profissão não é valorizada e não é preciso anos de carreira para o reconhecer, basta abrir os jornais e ver os casos de recém licenciados a emigrar e a apontar nas manchetes dos jornais o dedo a esta desvalorização salarial e de carreira. Alguém disposto a trabalhar por turnos, que fale 2 ou 3 línguas, com conhecimentos informáticos e ainda capacidade de lidar com público vale muito.

É precisamente para relembrar que as mulheres podem sim ser empreendedoras e muito mais, que o dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher – foi fixado. Considera que é urgente continuarmos a falar de igualdade, representatividade e liberdade? Por que motivo?
No outro dia, um grupo de ex-alunas minhas da Universidade Lusófona entrevistaram-me para um trabalho de grupo onde abordávamos este tema da mulher, do autocontrolo em contexto de trabalho, e debruçávamo-nos sobre como neste mundo de sobre informação os nossos modelos por vezes estão deturpados, camuflados num universo de parecer bem. E isto representa tudo menos o mundo real.
Infelizmente somos educados para o sucesso. O fracasso, por oposição ganha uma dimensão tal que com medo dele, nem se tenta. Devíamo-nos focar na experimentação e envolvimento naquilo a que nos dedicamos, mais do que nos títulos, no que parece nas redes sociais, no que os outros pensam. E para nós importa o caminho, não o destino onde o processo deve ser prazerosamente quer para a equipa TH2 quer para o cliente-hoteleiro. Reforçar  a individualidade do que nos faz sentir devia ser o foco para nos aproximar de ideais de liberdade e representatividade.
Há uma vivência de contradições e contrariedades nas nossas escolhas de vida. Deparamo-nos com pais e mães com instintos incríveis que optam não seguir (pegar ao colo, amamentar, deixar o emprego, entre outros) pois estão castrados por tabus e represálias da sociedade e da família no seu estilo parental. Há empregados com ideias incríveis que não tem voz e acabam por criar empresas mais tarde com sucesso, onde poderiam ter contribuído de outra forma se fossem ouvidos ou pior, vivem desmotivados numa empresa que ridiculariza as suas ideias. Há relações de trabalho que poderiam desenvolver-se na projeção de trabalhos ou simplesmente contribuir para redução de estados de stress e burnout e são reprimidas por padrões da sociedade que ditam amizades entre homens e mulheres. São alguns simples exemplos de como preferimos não levantar ondas e ser “mais um carneiro no rebanho”, sem referir sequer orientações sexuais, questões raciais, religiosas, entre outras.
Particularmente sobre o tema do papel da mulher parece que ou somos feministas e fala-se de empreendedorismo no feminino de forma extremista ou passamos despercebidas. O sucesso dos negócios deve estar dissociado do género, da raça ou religião. O foco deverá ser fazer acontecer mais que debater sobre o que se vai ou pode fazer, sem esquecer o que é ser mulher (a nível físico, hormonal, intelectual) e que para alcançar a igualdade não é estar de igual, pois na nossa natureza já estamos por defeito em desigualdade se não soubermos revertê-las para superpoderes. É tudo uma questão de mindset.

Daqui a uns anos, na área da Hotelaria e do Turismo em específico, como gostaria de ver o mundo? O que mudaria e/ou melhoraria?
Acredito num bem maior na consultoria turística. Correndo o risco de soar prepotente, não aceitamos todos os projetos. Costumo criticar como “se alguém não nos percebe a culpa é nossa que não soubemos explicar”, mas há situações em que está tudo às claras e visivelmente cliente x ou y (ou parceiro) não está alinhado connosco.
Orientamo-nos aos valores de uma hospitalidade de minúcia e detalhe, de serviço e prestabilidade exímios e de um profissionalismo de ponta focado na disponibilidade e cooperação acima de luxo despersonalizado. E isso requer vontade num caminho que exige preparação, mas que também ensinamos a percorrer. E às vezes começa na hospitalidade humilde, despida de intenção contratual mas genuína e real para com todos: com o fornecedor, o parceiro ou mesmo o carteiro!
Reconhecer o esforço de trabalhar em conjunto em prol de um bem maior: o rótulo de determinado destino turístico. A concorrência deve ser um trabalho de cooperação e não de definhar o mercado ou desventrar as tarifas como num leilão.
A capacitação das equipas (teimosas, orgulhosas, fechadas…) tem que acabar e ser implementada ou encaixar a inaptidão assumida. Queria um turismo que parasse de virar costas e que se correlacionasse mais, aprendesse e aperfeiçoasse mais para um bem comum que assenta na valorização dos destinos e dos lugares.
Queria tanto uma hotelaria humilde que aprendesse o mundo que há do serviço, da hospitalidade sem complexos pessoais e mergulhado num ensinamento profundo que não dê lugar a subjetividade da interpretação “hospitalidade” como se houvesse só uma- a de excelência e explicada a todos como se tivéssemos 4 anos, com exemplos.
Um turismo que antes de apontar o dedo ao turista, que assegure o mindset dos players e dos residentes em matéria de ecologia, qualidade de vida, mobilidade, sustentabilidade, boas práticas e boa educação em geral.
E em várias frentes entra a TH2 com estas premissas na mira: a motivação das equipas, a sua prestabilidade, a relação com os parceiros e fornecedores locais, o desenvolvimento de serviços excecionais prestado por pessoas excecionais e o culminar numa experiência verdadeiramente única para quem dela desfruta.