Manuel Ramirez Fernandes, Advogado Especialista em Direito do Trabalho
Esta lei promove alterações e inovações com alcance prático, produto de opções de política legislativa, que, independentemente do seu acerto, não se afiguram complexas na sua implementação. São elas, por exemplo: as faltas por luto gestacional e as dispensas para consulta de Procriação Medicamente Assistida (PMA); a inserção de um regime específico que consagra e protege a figura do cuidador informal no âmbito laboral; o pagamento do trabalho suplementar nos valores existentes antes das alterações laborais promovidas pela “troika”, a partir das 100 horas anuais; o aumento da compensação legal por despedimento por motivos objetivos de 12 para 14 dia por cada ano de antiguidade; o aumento da licença parental do pai para 28 dias; a extensão ao trabalhador com filho com deficiência crónica ou doença oncológica, que com ele viva em comunhão de mesa e habitação, da prerrogativa de exercer a sua atividade em regime de teletrabalho, quando este seja compatível com a atividade desempenhada e o empregador disponha de meios para o efeito, entre outras. Temos algumas dúvidas na aplicação prática da possibilidade do trabalhador poder provar a situação de doença por declaração do serviço digital do Serviço Nacional de Saúde, que será feita por “autodeclaração de doença, sob compromisso de honra, que apenas pode ser emitida quando a situação de doença do trabalhador não exceder os três dias consecutivos, até ao limite de duas vezes por ano”. Tratar-se-á de consulta “remota”? Existe intervenção de algum médico? Em que consiste a “autodeclaração”?
Outras alterações já se afiguram de complexidade técnica com reflexos imediatos nas relações de trabalho, representando mudanças que podem ser de difícil implementação prática ou de discutível acerto. Por exemplo:
- a) A concessão de mais poderes à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), no âmbito de situações de despedimento com “indícios de ilicitude”. A possibilidade da ACT paralisar um despedimento não deixa de ser uma medida singular. A alteração legal confere à ACT os poderes para convocar a intervenção dos serviços do Ministério Público (MP), para fins de instauração de procedimento cautelar de suspensão de despedimento, quando a ACT entenda que existe um despedimento com “indícios de ilicitude”. Mas a aparente linearidade deste mecanismo de controlo administrativo de um despedimento acarreta os mesmos problemas que os levantados noutras situações análogas anteriores relativas à qualificação do contrato de trabalho. A que indícios de ilicitude se refere o legislador? Substantivos ou procedimentais? Quem é que o Ministério Público representa? O Estado ou o trabalhador? O trabalhador não deverá ser porque, no limite, tudo isto se pode passar sem a sua intervenção. Se o trabalhador despedido mandata um advogado para o patrocinar, como se articula o mandato forense com estas iniciativas cautelares do MP? Ao empregador não é garantido um verdadeiro contraditório nesta fase administrativa, uma vez que a lei fala unicamente em que este terá um prazo para “regularizar a situação”. Se o empregador regulariza a situação, o trabalhador já não pode impugnar o despedimento? Essa regularização revoga juridicamente a decisão de despedimento e reata a relação laboral? Independentemente da vontade do trabalhador? Este deixa de poder optar pela indemnização em substituição da reintegração? Afigura-se-nos mais uma reminiscência do Direito do Trabalho “de exceção” que foi implementado durante a pandemia (e por causa dela), promovendo (novamente) a incursão de uma autoridade administrativa numa das matérias mais complexas do Direito do Trabalho (a existência de justa causa de despedimento). No nosso entender esta alteração legislativa devia ter sido mais ponderada, porque apresenta fragilidades substantivas e processuais assinaláveis e pode redundar em prejuízo do próprio trabalhador;
- b) A conjugação das alterações ao regime do período experimental com as alterações em matéria de obrigação de informação (transposição da Diretiva 2019/1152, relativa a condições de trabalho transparentes e previsíveis na União Europeia), vieram obrigar o empregador a dar uma atenção acrescida a estes regimes, tendo em conta as graves consequências que podem resultar da sua violação. Parece-nos extremamente controverso que as consequências de um uso considerado “abusivo” da denuncia no período experimental tenha a consequência de ser a cessação do contrato equiparada a um despedimento ilícito. Sobretudo porque continua o regime-regra a determinar que as partes, neste período inicial do contrato, podem denunciá-lo sem necessidade de invocar qualquer justa causa. Parece-nos também existir uma inversão do regime anterior, na medida em que, caso nada seja referido ou o empregador não cumpra os seus deveres de informação relativos ao período experimental, passa a presumir-se que as partes acordaram na exclusão do período experimental. Acresce que, no respeitante ao período experimental relativo à contratação de desempregados de longa duração e jovens à procura do primeiro emprego (que anterior alteração legislativa, sob grande controvérsia, aumentou para 180 dias), a fórmula legal procura reduzir o período experimental quando a contratação se suceda a contratos a termo ou a contratos de estágio profissional, para diferente empregador. Se o objetivo legal é compreensível, a fórmula legal é extremamente complexa, admitindo diferentes interpretações quanto à possibilidade de redução do período experimental, tratando também de forma diferente as situações de contratação a termo e de contrato de estágio profissional, sem explicação aparente que não seja uma cópia cega da Diretiva comunitária transposta. Porque é que, caso se trate de contratação que se suceda a um contrato a termo, a lei não obriga que estes trabalhadores tenham sido anteriormente contratados para a mesma atividade ou função, contrariamente ao que exige para as situações de estágio profissional anterior? O fomento da contratação destes dois grupos específicos de trabalhadores, intrinsecamente portadores de fatores de fragilidade, poderá ter ficado comprometido pela desnecessária complexidade das alterações legislativas;
- c) É instituído um novo regime que afasta do Direito do Trabalho a possibilidade das partes utilizarem o instituto civil da remissão abdicativa de créditos (art.º 863.º do Código Civil). Ao contrário do regime anterior, o trabalhador deixa de poder abdicar dos créditos emergentes de contrato de trabalho (ou da sua cessação), mesmo que o faça em simultâneo ou após a cessação do contrato de trabalho. Esta medida, se compreensível para fazer cessar situações abusivas de abdicação pelos trabalhadores de créditos incontroversos pertencentes à sua retribuição modular e nuclear, já não parece fazer sentido relativamente a situações litigiosas, analisadas pelas partes quando negoceiam uma cessação do contrato de trabalho. Se o acordo obtido pondera todas as situações creditícias do trabalhador, nomeadamente as litigiosas, e as partes são assistidas por advogados nesta fase da cessação do contrato, o legislador devia ter estendido a exceção a esta proibição também quanto a elas. Não faz sentido só ser admitido este tipo de remissão abdicativa em sede judicial, promovendo uma litigiosidade desnecessária e deixando o empregador sempre nas mãos da “boa-fé” do trabalhador, porque o conjunto de situações tendencialmente litigiosas que podem ser ponderadas no momento de fazer cessar, por acordo, um contrato de trabalho, podem não recair (e muitas vezes não recaem) sobre direitos imperativos ou que possam ser considerados “de exercício necessário”;
- d) A nova proibição do outsourcing subsequente a um despedimento, também se apresenta bastante controversa, nomeadamente, e desde logo, na sua conformidade constitucional. Passa a não ser admitido o recurso à aquisição de serviços externos através de terceiras entidades para a satisfação de necessidades que foram asseguradas por trabalhador cujo contrato tenha cessado, nos doze meses anteriores, por despedimento coletivo ou extinção do posto de trabalho. É a alteração que gerou um maior conjunto de críticas pelos representantes das entidades patronais, nomeadamente pelo que representa de restrição ao princípio constitucional da liberdade de iniciativa privada. Desde logo, e mesmo mantendo a dinâmica e teleologia da alteração (que é controversa), o período de doze meses parece manifestamente longo. Teria sido mais adequada uma restrição relativamente um período de seis meses, possibilitando que fosse de três meses em casos devidamente fundamentados. As mutações económicas operam em ciclos cada vez mais pequenos, e as vicissitudes de mercado, estruturais ou tecnológicas podem ter uma lógica e racionalidade que obrigue as empresas a reestruturações em períodos inferiores aos referidos 12 meses. Veja-se o caso da obrigação de um empregador, até 30 dias após ter promovido a cessação, por caducidade, de um contrato a termo, dar preferência ao trabalhador a termo que viu o seu contrato de trabalho caducar na futura celebração de um contrato sem termo para funções idênticas aquelas para que tinha sido contratado. Mas a questão de fundo não é esta. Se a nossa Constituição permite a existência de despedimentos com justa causa por motivos objetivos, porque é que a lei ordinária restringe a liberdade de iniciativa económica em momento subsequente a essa justa causa, e por um período tão longo? Ou há justa causa, ou não há justa causa. A lei ordinária estabelecer restrições à liberdade de iniciativa económica fora deste princípio parece-nos muito controversa. No regime da contratação a termo, onde a lei também contém restrições temporais à contratação de trabalhadores para postos de trabalho ou atividade profissional objeto de denúncia por caducidade do contrato, o que está em causa não são situações de justa causa. O que está em causa são situações de falsa invocação, pelo empregador, da transitoriedade ou excecionalidade da contratação a termo anterior. Será difícil articular este regime com o direito (e, inclusive, dever) das entidades patronais procederem à reestruturação das empresas, dentro do seu direito constitucional de iniciativa económica, podendo representar uma restrição inconsequente e não conjugável, na sua integração sistemática, com a lógica subjacente à permissão constitucional de despedimentos com justa causa objetiva;
- e) Sem prejuízo da necessidade do cumprimento dos deveres gerais de confiança e lealdade, passa também a ser proibido ao empregador impor a exclusividade ao trabalhador. Ou seja, não pode obstar a que o trabalhador exerça outra atividade profissional, salvo com base em fundamentos objetivos. Esta proibição só tem racionalidade, no nosso entendimento, relativamente a contratos a tempo parcial ou intermitentes, que não ocupam o trabalhador a tempo inteiro. O novo regime, aplicável também a contratos de trabalho a tempo inteiro, vai contra os objetivos constitucionais, europeus e nacionais, de conciliação da vida privada com a vida profissional (uma das finalidades principais da “Agenda do Trabalho Digno”). Vai também contra os princípios laborais inerentes ao direito ao descanso, ao repouso e à obrigação de gozo efetivo de férias remuneradas pelo empregador. Vai, inclusive, em sentido contrário aos objetivos do direito à desconexão (em regime de teletrabalho ou não). Se ao trabalhador é legalmente permitido alargar o seu período ativo para além das 40 horas de trabalho semanais, podendo desenvolver outras atividades profissionais, qual é o sentido do objetivo de diminuir o período normal de trabalho semanal para 35 horas ou para diminuir a semana de trabalho para 4 dias? Manterá, por outro lado, a sua capacidade (e obrigação) de promover ou executar todos os atos tendentes à melhoria da produtividade na empresa, face aos períodos de “não-descanso” após trabalhar as 40 horas semanais para o empregador? Poderá, legitimamente, trabalhar no período de descanso semanal (obrigatório e complementar, caso exista) e de férias remuneradas pelo empregador? Em caso afirmativo, porque é que as férias dos trabalhadores são remuneradas, tendo este ainda direito a um subsídio de férias de valor igual aquele que receberia se estivesse a trabalhar? Nestes casos, parece deixar de se justificar o seu pagamento. Também aqui o pragmatismo legislativo padece de alguma ambliopia;
- f) As diversas dúvidas e preocupações que nos assolam também recaem sobre a crescente equiparação de um número cada vez maior de situações profissionais autónomas a relações laborais. E à cada vez maior abrangência do conceito de “dependência económica”, nomeadamente para efeitos de aplicação de normas laborais respeitantes a (i) direitos de personalidade, (II) igualdade e não discriminação e (iii) segurança e saúde no trabalho. A aplicação a estes “prestadores de serviços” dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho negociais em vigor no âmbito do mesmo setor de atividade levanta as seguintes questões: Estamos a combater as formas de trabalho precário e os falsos “recibos verdes”, ou estamos a criar condições para que essa diferenciação, essa fronteira contratual, seja cada vez mais irrelevante? Estamos a procurar encontrar novas fronteiras que permitam, com segurança jurídica, essa diferenciação contratual (nomeadamente através da consagração de presunções de laboralidade), ou estamos a eliminar essas fronteiras contratuais porque queremos torná-las profissionalmente irrelevantes, independentemente da sua qualificação? O pragmatismo politico-legislativo não está a tornar “irrespirável” toda a discussão jurídica sobre esta matéria, e a inviabilizar todos os esforços para encontrar essa delimitação? Como reagirá o “pragmatismo empresarial” a estas alterações?