A ERSAR é uma entidade administrativa independente dotada de autonomia de gestão e de património próprio que tem por missão a regulação e a supervisão dos setores dos serviços de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos. Como tem vindo a ser o concretizar desta missão ao longo dos anos?
A ERSAR tem uma missão muito importante nos setores da água e dos resíduos. Os serviços que regulamos são serviços públicos essenciais que assentam em monopólios (legais ou naturais). Por isso, a intervenção da entidade reguladora é crucial para garantia da sustentabilidade dos serviços e, sobretudo, para defesa dos consumidores (os de hoje e os de amanhã).
No próximo ano, completamos uma década enquanto entidade administrativa independente, com autonomia e poderes de autoridade, sancionatórios e regulamentares. Somos uma entidade pública (integrada na administração do Estado) mas com independência relevante (e fundamental) face ao Governo (e à administração direta e indireta) e às autarquias locais.
Gosto aliás de relembrar sempre que posso que o nosso trabalho na ERSAR é eminentemente técnico. Na ERSAR temos uma equipa de técnicos altamente capacitados com formação essencialmente técnica (na área da engenharia, nas áreas financeiras, de gestão de dados e jurídica, entre outras) que se ocupa com atividades que vão desde a regulação estrutural dos setores que regulamos (que inclui contribuir, por exemplo, para a legislação e regulamentação do setor, para a divulgação da informação e para a capacitação) à designada regulação comportamental das entidades reguladas que inclui, por exemplo, a regulação económica e o estabelecimento de tarifas, a regulação da qualidade do serviço, incluindo aqui a regulação da qualidade da água para consumo humano.
A nossa missão é difícil e temos muito a fazer. Estamos numa altura de grandes mudanças nos setores regulados, setores que são essenciais para a implementação de uma efetiva Economia Circular e críticos para a nossa vivência enquanto comunidade e país.
O trabalho da ERSAR enquanto regulador económico é exigente e requer agilidade e uma capacidade constante de adaptação pois temos de tomar decisões que permitam, a todo o tempo, alcançar o equilíbrio entre a proteção dos interesses dos utilizadores destes serviços – através da promoção da qualidade de serviço e da garantia da moderação dos tarifários praticados – e a salvaguarda da sustentabilidade do serviço no médio e no longo prazo.
Apesar da dificuldade da missão, o trabalho da ERSAR é muito entusiasmante e a verdade é que, havendo tanto a fazer, o percurso recente destes dois setores no nosso país (e o que a regulação tem feito neste domínio) tornam Portugal num dos Estados-Membros da União Europeia que melhor tem evoluído nas últimas três décadas.
Face ao papel da ERSAR em Portugal, compete à Entidade promover o aumento da eficiência e da eficácia na prestação dos serviços do setor. Assim, e tendo em conta as mudanças constantes do mundo e os seus desafios atuais, de que forma o tem feito?
No que toca à eficiência, a ERSAR tem repetido que “a eficiência é a origem de água que está ainda por explorar em Portugal”.
O uso eficiente da água implica adotar procedimentos de gestão holística da água, que se prendem, por exemplo, se pensarmos na necessidade que temos de reduzir a procura de água em cenário de escassez, com o controlo de perdas em sistemas de abastecimento e com a sustentabilidade económica e financeira dos operadores.
Os pareceres emitidos pela ERSAR e os resultados que anualmente publicamos no nosso RASARP (o relatório anual do setor) sublinham precisamente quando e onde Portugal precisa de recuperar água perdida nas redes e alterar tarifários para melhoria da sustentabilidade dos serviços. Só com tarifários adequados é que é possível realizar investimentos e reabilitar infraestruturas.
No que respeita a eficácia, a ERSAR avalia anualmente a qualidade do serviço prestado aos utilizadores, através do benchmarking do desempenho das entidades gestoras e da sua performance, através de um sistema de indicadores de qualidade. Este sistema de indicadores – considerado um exemplo a nível europeu – permite às entidades que operam o sistema conhecer o desempenho e saber para onde devem caminhar para servir melhor os consumidores.
A ERSAR faz parte, claro está, da história do setor da água e do saneamento em Portugal. Como analisa a evolução deste setor até aos dias de hoje?
Com a integração europeia, e com a consequente disponibilidade de fundos comunitários, o setor beneficiou de uma melhoria notável nos seus indicadores essenciais. Na década de 1990 foram criadas empresas regionais (sistemas multimunicipais cujo capital seria detido maioritariamente pelo Estado em parceria com os municípios) e uma holding de capitais públicos que se constitui atualmente como referência empresarial no setor e que é o Grupo Águas de Portugal.
Os sistemas de abastecimento e saneamento foram divididos em ‘alta’ (sistemas multimunicipais e intermunicipais) e em ‘baixa’ (sistemas municipais). As autarquias passaram a poder concessionar os respetivos serviços a empresas públicas (nos sistemas multimunicipais) e a empresas públicas ou privadas (nos sistemas municipais), criando-se, ao mesmo tempo, a figura de uma entidade reguladora, a atual ERSAR, que evoluiu e passou de observatório, a instituto público e, agora, a entidade reguladora independente.
Ocorreu uma evolução muito assinalável dos setores da água e saneamento nos últimos 30 anos. Para dar um exemplo, há 30 anos havia uma zona considerável de Portugal Continental sem acesso à água e a água distribuída não era, muitas vezes, segura para consumo doméstico. Atualmente estamos com níveis de cobertura de serviço altamente satisfatórios e a água da torneira apresenta um grau de segurança de 99% há oito anos consecutivos.
Todavia, precisamos agora (mesmo!) de dar um salto qualitativo em matérias tão importantes como a eficiência de utilização dos recursos hídricos, a diminuição da água não faturada e a cobertura de gastos sustentável. Só com este salto qualitativo poderemos garantir às gerações vindouras a continuidade destes serviços com a qualidade a que já nos habituámos.
Foi publicado, recentemente, o Decreto-Lei n.º 69/2023, de 21 de agosto de 2023, que determina as novas regras de controlo da qualidade da água para consumo humano. Sabendo que as últimas três décadas se caracterizam por uma crescente melhoria da qualidade da água para consumo humano, o que vem este novo quadro regulamentar mudar e melhorar?
Em primeiro lugar, vem consolidar a implementação da abordagem de avaliação e gestão do risco em toda a cadeia do abastecimento de água (origens, redes de distribuição e redes prediais). A avaliação e gestão do risco, introduz mais segurança e racionalidade técnica e financeira na determinação dos parâmetros a controlar na verificação da qualidade da água.
Outra alteração, relacionada com a evolução do conhecimento científico, é a alteração de alguns valores paramétricos, ou seja, alguns valores limite que, nuns casos são mais exigentes e noutros estão adaptados à realidade geográfica onde os sistemas de abastecimento operam.
Este novo quadro regulamentar também tem como novidade a criação de uma lista de vigilância de compostos que será atualizada com regularidade e determina que todos os Estados-membros deverão fazer uma avaliação da sua situação particular relativamente a esses compostos. Salienta-se aqui, por exemplo, o controlo de alguns desreguladores endócrinos ou dos microplásticos.
Outra alteração importante é a uniformização das regras de utilização dos materiais e produtos em contacto com a água permitindo uma maior justiça e equidade entre os produtores e fabricantes dos diversos Estados membros e a utilização dos melhores materiais e produtos em contacto com a água, com os consequentes benefícios para a proteção da saúde humana.
Este novo quadro regulamentar, que corresponde à transposição da Diretiva (UE) 2020/2184, incorpora outras novidades que não estão relacionadas diretamente com a qualidade da água para consumo humano. Uma destas novidades é a promoção da redução das perdas de água nas redes de distribuição, determinando que os Estados-membros têm de fazer uma avaliação das perdas nas respetivas redes e apresentar um plano de redução das mesmas. Nesta matéria, podemos considerar que Portugal já tem uma boa parte do seu trabalho feito, uma vez que o modelo de regulação da qualidade do serviço já faz esta avaliação desde 2004.
Outra novidade relevante, para além de outras que não irei elencar, está relacionada com a informação que deve ser prestada aos consumidores que, no caso português, já estava em alguma medida consagrada na regulamentação da faturação detalhada.
Considera que este passo significa um avançar na consolidação da segurança da água da torneira, que irá refletir uma crescente confiança dos consumidores? Sente que a população está desperta para a segurança deste consumo?
Como já referi, as últimas três décadas caracterizaram-se por uma crescente melhoria da qualidade da água para consumo humano, tendo sido atingido o nível de excelência de 99% de água segura na torneira em 2015 (água gerida pelas entidades gestoras dos sistemas públicos de distribuição), que se mantém como tal desde então.
Este novo regime legal consagra a monitorização de compostos, substâncias e microrganismos que até agora não constavam da rotina do controlo da qualidade da água para consumo humano das últimas três décadas (por exemplo alguns desreguladores endócrinos, fármacos, microplásticos, PFAS e até da Legionella). Trata-se de um regime legal e de um controlo mais exigente, mas necessário. A ERSAR enquanto entidade com competências relevantes em matéria da qualidade da água para consumo humano está convicta de que este novo quadro regulamentar constituirá mais um passo em frente na consolidação da segurança da água da torneira.
A 1 de outubro celebra-se, em Portugal, o Dia Nacional da Água, que relembra a importância de se refletir sobre o uso eficiente deste recurso e a implementação de medidas para reduzir perdas. Quão urgente é, atualmente, esta mensagem?
Esta mensagem é muito importante e é cada vez mais urgente.
A perda real de água nos sistemas, corresponde à água que é captada na origem, que é tratada, que é entregue à rede de distribuição, mas que não chega à torneira dos consumidores porque perde-se pelo caminho.
Este é um indicador que está insatisfatório para a realidade nacional e existe um caminho muito importante para percorrer, do ponto de vista financeiro e ambiental, sem prejuízo da existência de alguns excelentes exemplos de redução de perdas que podem servir de modelo para todos os outros e assim melhorar o panorama nacional.
Tratar a água implica não só custos financeiros, mas também a utilização de energia e alguma pegada de carbono. Mais, num cenário de escassez, a questão da perda real exponencia-se em termos de relevância porque nas zonas do território onde repentinamente deixa de haver água na origem, para o consumidor ter um litro na sua torneira, considerando as perdas pelo caminho, tem de ser encontrada uma origem que dê mais de um litro. E isto revelou- se muito complicado, por exemplo, na gestão da escassez em 2022.
Este problema é mais notório em sistemas mais pequenos sem gestão empresarial (e há muitos destes sistemas em Portugal); nos sistemas com gestão empresarial há um incentivo ao combate às perdas porque está associado aos custos e à faturação. Já nos sistemas não empresariais, este tema por norma não é assim tão relevante e é mais uma questão invisível, enterrada (já que as redes são subterrâneas), e que só aparece nas situações críticas – como as que se vão repetir cada vez mais.
Sublinho a este propósito que as redes de distribuição e de saneamento são robustas e contam com um “período de vida” que pode ir de 25 a 100 anos. Assim, de forma indicativa, a renovação deveria ocorrer a uma taxa de 1 a 4% ao ano. Ora, isso não está a acontecer em Portugal. Os últimos dados do RASARP revelam que a média ponderada para as entidades gestoras em baixa é de 0,6%, ou seja, abaixo das taxas de renovação ótimas. Aquilo que a ERSAR entende como prioritário para garantir o combate às perdas reais é, acima de tudo, a monitorização.
Esta monitorização é imperativa do ponto de vista da utilização eficiente dos recursos técnicos e financeiros, e, acima de tudo, do ponto de vista ambiental para o recurso água que, sabemos, será cada vez mais valioso e escasso.