
Psicóloga de referência, a Marisa Marques tem vindo a pautar o seu caminho através de um compromisso forte com o bem-estar dos outros, assumindo um pendor muito forte no apoio ao próximo. No sentido de contextualizar o nosso leitor, como é que surgiu esta proximidade e paixão pela psicologia?
Como já fui dizendo várias vezes em outras entrevistas eu poderia, claramente, usar o cliché que muito ouvimos muitas vezes: “sempre fui isto que quis”, “este é o meu sonho de pequenina” ou que exerço psicologia “porque gosto do contacto com as pessoas acima de tudo;” porque me preocupo com o bem-estar das pessoas, porque gosto de conhecer histórias de vida, porque gosto de mostrar que tudo na vida tem duas faces da moeda.
Mas na realidade isto é só 1/6 daquilo que me faz apaixonar pela minha profissão e me liga mais à psicologia. Desde 2013 quando tive o primeiro contacto com a prática profissional e com a população pediátrica em contexto clínico/hospitalar, logo vi que além do grande conhecimento e sabedoria temos que trabalhar com paixão e muita dedicação, pois sem ela não teremos a capacidade de chegarmos, de nos envolver e entrar no Mundo da Criança. E mesmo amando aquilo que faço trabalho muito e não deixa de ser duro, custoso e pesado. Não se enganem, não é tudo um mar de rosas, mas de acordo com a Lei da Evolução Humana sabemos que “não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas aquele que melhor se adapta às mudanças”. E este é o ingrediente mágico na paixão profissional.
E além de todos os desafios e dificuldades diárias quer profissionais quer pessoais é a adaptação a cada problema, a cada criança/adolescente, a cada família que me fazem acordar apaixonada pelo meu trabalho é aquela lágrima daqueles pais e/ou daquelas crianças que mais tarde são substituídas por sorrisos e palavras bonitas cheias de amor e gratidão, é ver aquela lesão e aquela perturbação de neurodesenvolvimento que deixa de ser uma limitação e passa a ser uma bênção e uma aprendizagem…
É tudo isto que me prende e me faz ter cada vez mais uma ligação íntima com a psicologia é o facto de diariamente me proporcionar a oportunidade de poder fazer a diferença na vida de alguém da forma mais genuína que possa existir.
Sabemos que atualmente vivemos num momento em que se fala cada vez mais da saúde mental, da importância da psicologia no sentido de apoiar as pessoas com maiores dificuldades, entre outros. Sente que atualmente começamos a ter e a dar maior relevância a estas questões?
Sim, já sinto bastante diferenças no paradigma e no estigma perante a saúde mental. Contudo apesar de já muito falado na sociedade, nos meios de comunicação, a realidade em que ainda existe muito a fazer. Além de que sabemos que cuidar do bem-estar psicológico e o desenvolvimento dos mais pequeninos é investir na geração de amanhã. E este sim é o ponto que diariamente falha e muito. Assim existe um enorme desinvestimento e “desinteresse” pela área infantil pois ainda estamos numa era em que o pensamento é “ele ainda é muito pequenino para sofrer de alguma coisa”, “ele ainda tem tempo de desenvolver… de falar… de deixar a fralda”, “ele ainda é muito novinho para”. Mas na realidade, de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria da Infância e da Adolescência (AACAP) 1 em cada 5 crianças apresenta um quadro clínico de doença mental e ou perturbação de neurodesenvolvimento. E esta proporção tem dado sinais de que irá aumentar e bastante.
Torna-se uma prioridade a dedicação e o investimento (não apenas no SNS através de contratação de psicólogos para o público) mas também que a sociedade compreenda a necessidade de investir na saúde mental dos mais pequenos.
Num passado não muito distante, a verdade é que uma “ida ao psicólogo” era demonstrativa de uma personalidade fraca e frágil. Sente que, à luz desta nova consciência, que esse estigma tem vindo a mudar? O que é necessário continuar a promover para que o mesmo (o estigma) seja completamente erradicado?
Sim, tal como disse anteriormente o paradigma vai mudando, contudo ainda está aquém do que é desejável. Hoje em dia já ouvimos a sociedade a declarar que não é preciso ter uma depressão ou uma esquizofrenia para se ir ao psicólogo. Assistimos hoje a uma sociedade que não tem tanta necessidade de “rotular” de doença mental para se justificar uma ida ao psicólogo.
De certa forma é necessário olhar para o psicólogo como se olha para um dentista que “quando me dói o dente eu vou procurar ajuda, ou se sinto que algo não está bem com o meu corpo vou procurar o médico de família”. Por isso porque não procurar um psicólogo quando sentimos que não conseguimos lidar com algo, quando sentimos tristes e ansiosos, quando algo não se esta a desenvolver de forma correta com o meu filho…
Pelo que procurar ajuda não é para os fracos, mas sim para os corajosos que querem enfrentar e vencer os obstáculos.
No dia 1 de junho celebra-se o Dia Mundial da Criança, sendo que também estas sofrem com patologias relacionadas com a saúde mental. Que análise perpetua, pela sua experiência, da realidade deste público mais jovem, as crianças, no que concerne ao impacto e importância da psicologia?
As perturbações de saúde mental da primeira infância são mais comuns do que se imagina, sendo por isso frequente a desvalorização dos problemas e atraso na procura de ajuda. Embora algumas das perturbações (como hiperatividade/défice de atenção, autismo, entre outras) não apresentem tratamento curativo, é sempre possível melhorar a qualidade de vida dos mesmos e da família com uma intervenção adequada, o mais precocemente possível.
Pensa-se que o período entre o nascimento e a entrada na escola primária é, habitualmente, considerado feliz e sem preocupações, pelo que para a maioria das pessoas é surpreendente saber que um número significativo de bebés e crianças sofrem de uma perturbação mental relevante.
Dada a importância da deteção e intervenção precoce nestas crianças, tem havido, nas últimas décadas, uma crescente preocupação com a saúde mental nesta faixa etária. São reportadas na literatura como sendo frequentes as perturbações do sono, alimentação, regulação emocional, processamento sensorial e de comportamento. A maioria destes problemas têm impacto no desenvolvimento da criança, tornando-as também mais vulneráveis a vir a sofrer de doenças mentais na adolescência ou vida adulta.
Pelo que alerto para que a doença mental que não é tratada na infância tem sérias consequências na vida enquanto adolescente e mais tarde enquanto adulto, condicionando a saúde física e mental e limitando oportunidades de vida.
Fale-nos um pouco mais do conceito Neurofeedback. Que técnica é esta? Como surgiu a mesma? De que forma a tem vindo a aplicar?
Todos nós já ouvimos dizer que o cérebro depois do seu crescimento total, se torna imutável e incapaz de gerar novas ligações e continuar a reproduzir novas células. E é verdade, no entanto, algumas pessoas não sabem é que o nosso cérebro tem capacidade de restabelecer novas conexões e de criar caminhos alternativos para restaurar ou criar uma atividade neural — Neuroplasticidade – ou seja, o nosso Sistema nervoso tem a capacidade de se moldar às adversidades do meio e restabelecer funções e criar conexões entre as áreas do cérebro.
E, atualmente, com o avanço científico na área da neurociência, sabemos que sempre que existe alguma perturbação ou disfunção neurológica ou suspeita, a atividade cerebral pode ser avaliada por diversos métodos clínicos que nos permite, enquanto profissionais de saúde, verificar o funcionamento e/ou disfunção neurológica, permitindo-nos identificar as ondas cerebrais, os seus padrões, amplitudes e frequências que mais tarde nos permite definir as melhores intervenções de acordo com a análise.
Há uns anos tínhamos sérias dúvidas e pouco se sabia e fazia em pacientes com disfunções na atividade cerebral; a medicação não atuava diretamente nesta disfuncionalidade, apenas atuava sobre os sintomas das disfunções, as terapias (psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional, etc) por si só também não tinham a capacidade de alterar o funcionamento do SN. Pelo que estudos na área da Neurologia debruçaram-se a encontrar uma forma de aumentar a qualidade de vida dos pacientes aprimorando o funcionamento cerebral através da Neuromodulação Autorregulatória, ou seja, a forma de estimular as capacidades e competências do nosso cérebro de forma a normalizar ao máximo toda a atividade cerebral- Intervenção por Neurofeedback.
A Intervenção por Neurofeedback é um procedimento não invasivo, nem doloroso; consiste na colocação de elétrodos no couro cabeludo do paciente para medir a atividade cerebral e treinar determinada atividade através de jogos e imagens projetadas num monitor. Este treino permitirá alterar padrões de ondas cerebrais promovendo a capacidade de autorregulação, sendo esta generalizada posteriormente para outras áreas da vida. Ou seja, o neurofeedback assenta no registo e análise automática da atividade elétrica do cérebro, procurando verificar e treinar a atividade cerebral de forma a potenciar o treino de processos mentais e permite o equilíbrio da função cerebral, bem como a correção de distúrbios que se podem observar na atividade cerebral.
De que forma é que esta técnica, Neurofeedback, permite o treino direto do funcionamento cerebral? É a mesma eficaz no tratamento de várias condições como Ansiedade, Hiperatividade, Défice de Atenção, Autismo, entre outras?
Utilizar o Neurofeedback na Intervenção Psicológica revela-se uma ferramenta adicional imprescindível de forma a fortalecer padrões chave cerebrais, melhorando a comunicação e o timing cortical bem como, permite que áreas cerebrais diferentes tenham um desempenho mais eficiente na sua atividade cerebral. Além disso, existem uma série de vantagens que o paciente usufrui por meio do tratamento, principalmente quando associado à psicoterapia.
No entanto, também poderá ser útil em casos que não existe uma patologia especifica associada, mas sim problemas do dia a dia (ex.: mente agitada, dificuldades de sono), assim como aumentar a performance cerebral (i.e.: Peak Performance) que é muito utilizado na comunidade de Alta Performance no Desporto. Revela-se assim útil no que diz respeito a intervir no âmbito: (a) escolar, profissional ou desportivo; (b) qualidade e rapidez na tomada de decisão; © competências de lidar com o stress, interações sociais; (d) na resiliência emocional e também na autoexpressão.
Por mais que o Neurofeedback tenha excelentes resultados, é fundamental ter em mente que nem sempre ele é recomendado. Pelo que o primeiro passo para identificar se o seu paciente pode realizar o neurofeedback é fazer as entrevistas iniciais e conferir se existe alguma crença relacionada a outras formas de intervenção.
Além disso, existem casos específicos que apresentam excelentes resultados com o neurofeedback, como Perturbação de Hiperatividade e Déficit de Atenção (PHDA), Perturbação de Stress Pós-Traumático, Perturbação do Especto do Autismo, Ansiedade, Depressão, Disfunções cognitivas e Perturbações de Aprendizagem especificas.
Se bem que existem pacientes que não apresentam nenhum quadro clínico definido, mas têm queixas frequentes de fortes dores de cabeça, insônia e convulsões, é importante averiguar a origem dos sintomas e propor o início do tratamento — sempre em conjunto a um médico responsável.
O neurofeedback é, assim, um recurso imprescindível nos planos de intervenção de muitos dos nossos casos, nomeadamente em casos que não foram conseguidos resultados positivos com as técnicas convencionais e psicofármacos.
Quanto tempo demora esta técnica a fazer efeito, e que impacto tem nas crianças que são submetidas à mesma?
Cada sessão de neurofeedback pode demorar entre 20 a 45 minutos, dependendo sempre da intervenção que está a ser realizada e a necessidade específica de cada indivíduo. Requer sempre um ajuste consoante o desempenho da nossa criança, assim como a sua capacidade para realizar uma sessão mais longa ou menos longa.
E por norma, não existe um número específico de sessões para obter resultados, porque cada caso é um caso.
Embora para determinados casos se possam observar mudanças ao fim de muito poucas sessões (ex.: 10), outros requerem mais sessões. Contudo, em média são necessárias 25 a 40 sessões (2 a 3 meses de treino) para que os resultados sejam duradouros, observando o seu impacto a longo prazo. Sendo que em casos de quadros crónicos ou mais complexos podem ser necessárias mais de 40 sessões para termos resultados consistentes a longo prazo.
Saliento ainda que existem crianças onde são visíveis os efeitos muito rapidamente, no entanto existem outros levam mais tempo a observarmos a mudanças, no entanto, é necessário tempo para que os benefícios dos treinos acumulem e se mantenham. Outro fator muito importante, é que previamente antes da conclusão das sessões, se vá realizando uma desvinculação do procedimento no espaço de tempo e não se corte por completo a realização do treino. Isso permitirá que os resultados e benefícios, se consolidem por mais tempo.
Quais as vantagens e benefícios do mesmo para os mais jovens? Pode a mesma também ser aplicada em adultos?
Sim claro que sim, tal como em crianças também é utilizado e bastante eficaz na população adulta, nomeadamente nos quadros descritos em cima. Sendo que na população adulta é mais frequente a utilização em casos de ansiedade e/ou ataques de pânico, com depressão, insónias e perturbações de sono, em casos de Fibromialgia e outras formas de Dor Crónica difusa, Zumbido, Fadiga Crónica, e muitas outras perturbações funcionais do Sistema Nervoso.
Que mensagem lhe aprazaria deixar sobre a importância da Psicologia para as Pessoas do denominado “mundo atual”?
Em primeiro que deixar o alerta para a saúde mental nas idades mais precoces pois como já disse a doença mental não tratada na infância tem sérias consequências na vida enquanto adolescente e mais tarde enquanto adulto, condicionando a saúde física e mental e limitando oportunidades de vida.
Contudo a saúde mental deverá hoje, amanhã e sempre ser a nossa prioridade social, familiar e individual. Até porque vida do nosso “mundo atual” está repleta de desafios e exigências que, muitas vezes, podem impactar negativamente um dos componentes fundamentais do nosso bem-estar geral: a saúde mental. Neste contexto, recorrer a um psicólogo pode ser um passo importante para melhorar a qualidade de vida, bem como reestabelecer a nossa saúde mental.