Para começar, poderia contar-nos um pouco sobre o seu percurso profissional até então?Como se iniciou na área do Direito e quais foram os momentos mais marcantes da sua carreira?
Licenciei-me em 1995, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, fui jurista numa empresa, notária e conservadora do registo civil durante 21 anos, tendo analisado e decidido processos de nacionalidade nos últimos 16 anos. Neste momento, sou jurista numa sociedade de advogados na qual me dedico à área da nacionalidade. Dedico-me igualmente à área do ensino, lecionando em vários cursos de pós-graduação, nomeadamente na pós-graduação em Registos e Notariado do Cenor (Centro de Estudos Notariais e Registais da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra). O momento mais marcante foi o da publicação do meu livro.
Fazendo uma «viagem» ao passado, o que a fez apaixonar-se pela área do Direito? Houve algum evento ou influência específica que a direcionou para esta carreira?
A área do direito surgiu de uma forma muito óbvia na minha vida. Desde cedo que comecei a entender o conceito de justiça e o relevo que tem na vida das pessoas que podem contar com uma pessoa para as ajudar a resolver os problemas que lhe surgem.
Atualmente, quem é a Isabel Cardoso Comte enquanto Jurista? Que áreas do Direito a definem atualmente?
A Isabel Comte é uma pessoa que nasceu noutro país e que também tem a nacionalidade portuguesa. A este cenário temos que acrescentar o facto de ter trabalhado durante muitos anos na área do direito da nacionalidade. Juntando o aspeto pessoal e profissional, continuo a trabalhar na área do direito da nacionalidade, na qual me especializei, bem como na resolução de questões inerentes a relações familiares transfronteiriças, ou seja, em que existem elementos de conexão com vários ordenamentos jurídicos, até porque, atualmente, a internacionalização das relações familiares é um fenómeno corrente.
Numa perspetiva pessoal e profissional, do que é que mais gosta no exercício da sua profissão enquanto Jurista? Quais são as partes mais gratificantes do seu trabalho diário?
Ajudar as pessoas a obter uma nacionalidade à qual têm direito é algo de relevante na vida de cada uma delas com vista a entenderem as suas origens e a sua história pessoal. Participar nesse processo e partilhar a alegria de uma pessoa com origens portuguesas em obter a nacionalidade não podia ser mais gratificante. Há séculos que os portugueses estabeleceram as suas vidas noutros países e é natural que existam no mundo milhões de descendentes de portugueses. Eu mesma estou nessa situação, pelo que me dedico a algo que me toca pessoalmente de forma muito profunda.
Falemos, agora, do Direito atual. Como observa a atualidade do Direito em Portugal? Quais são, na sua opinião, os principais desafios que os Advogados enfrentam hoje em dia e que oportunidades emergem neste cenário?
Tal como em outras áreas sociais, a palavra chave é a adaptação. Já lá vai o tempo em que uma lei se mantinha em vigor durante décadas. A produção legislativa é imensa e acarreta desafios na aplicação da lei no tempo. Basta pensar que as disposições sobre a nacionalidade que se encontravam no Código Civil de 1867 estiveram em vigor até 3 de agosto de 1959, data em que entrou em vigor a Lei nº 2098, de 29 de julho de 1959. Por sua vez, esta vigorou até 8 de outubro de 1981, data em que entrou em vigor a atual Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei nº 37/81, de 3 de outubro, que já vai na sua décima alteração. É óbvio que as sucessivas alterações têm possibilitado a obtenção da nacionalidade portuguesa por outras vias. Não esqueçamos que a lei se vai adaptando à realidade social e à dinâmica da deslocação de populações e claro que também constituem novas oportunidades para prestar auxílio a quem poderá recorrer a essas novas formas de obter a nacionalidade.
Considerando a sua vasta experiência e a sua obra “Lei da Nacionalidade – Anotada e Comentada”, como avalia as mudanças recentes na Lei da Nacionalidade e no Direito da Imigração em Portugal? Que impactos têm tido na prática jurídica e nos cidadãos?
As sucessivas alterações à Lei da Nacionalidade têm trazido novos desafios em termos de estudo e prática jurídica, principalmente no âmbito da aplicação da lei no tempo. Não podemos, porém, descurar o facto de que algumas dessas alterações não têm sido, em certa medida, bem ponderadas e por vezes vêm complicar a situação de pessoas que já se encontram em situações difíceis. Foi o que aconteceu agora com a revogação da manifestação de interesse com vista à obtenção de autorização de residência. Em termos da Lei da Nacionalidade também podemos verificar que a alteração do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa em 2022 e da Lei da Nacionalidade contêm disposições desproporcionadas para fazer face a problemas que surgiram na obtenção da nacionalidade em virtude de ser descendente de judeus sefarditas e que apenas se verificaram numa situação. Não podemos confundir o direito à reparação histórica com exigências desproporcionais de ligação efetiva de difícil comprovação e sem concretização dos documentos que irão comprovar essa ligação. Até porque a própria Lei da Nacionalidade já contém um meio de prevenir situações de eventuais fraudes quando permite a declaração de nulidade do despacho de concessão da nacionalidade no artigo 12º-A e permite ao conservador efetuar diligências oficiosas que considere necessárias para proferir a decisão, nos termos do artigo 42º, nº 1.
Recentemente mencionou que, como ex-conservadora na área da Nacionalidade, muitos Advogados estão equivocados nas suas interpretações. Poderia aprofundar esta afirmação? No seu ponto de vista, o que é que está errado e o que é que é necessário corrigir ou esclarecer?
A Lei da Nacionalidade não pode ser aplicada sem ter um profundo conhecimento de outros diplomas com os quais está relacionada. Estou a referir-me desde logo à Constituição da República Portuguesa, ao Código Civil, quanto à aplicação da lei no tempo, ao Código do Processo Civil para o qual remete o Código de Processo nos Tribunais Administrativo no seu artigo 1º, ao Código do Registo Civil na medida em que a concessão da nacionalidade é um facto sujeito a registo obrigatório e deve ser conciliado com as regras de registo e finalmente o Código do Processo Administrativo, em virtude do pedido de nacionalidade constituir um procedimento administrativo.
Contudo, o mais relevante é o facto de se entender que toda a alteração à Lei da Nacionalidade requer que seja alterado o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa. A Lei até pode estar em vigor, mas não tem “operacionalidade” sem que sejam determinados com rigor quais são os procedimentos e os documentos que serão necessários para instruir o pedido.
Olhando para o futuro, quais são as suas perspetivas quanto à evolução do Direito, especialmente nas suas áreas de especialização? Que mudanças ou reformas gostaria de ver implementadas?
Infelizmente temos assistido a uma produção legislativa desmesurada e sem qualidade. As soluções jurídicas encontradas são frequentemente desproporcionadas, de difícil interpretação e aplicação prática.
Outras vezes são destinadas a “apagar fogos” não se destinando a produzir efeitos a longo prazo.
As frequentes alterações à Lei da Nacionalidade têm igualmente provocado um atraso significativo na decisão dos pedidos, pois é sabido que cada vez que são exigidos requisitos mais gravosos para obtenção da nacionalidade, o número de pedidos aumenta exponencialmente antes da entrada em vigor dessas disposições.
Cada alteração à Lei da Nacionalidade deve ser bem ponderada e efetuada com uma consulta efetiva de quem conhece a realidade no terreno, numa interação entre o legislador e os membros da sociedade civil e profissionais que aplicam diariamente as disposições legais e conhecem profundamente os procedimentos.
Para finalizar, que mensagem gostaria de deixar a todos os jovens que estão a iniciar as suas carreiras na Advocacia? Que conselhos e palavras de coragem tem para lhes oferecer?
Para todos os jovens que escolhem esta área deixo dois conselhos: que o direito seja uma paixão nas suas vidas e que não parem de estudar.
Todas a profissões jurídicas requerem um domínio de excelência do direito, na sua globalidade, o que constitui uma tarefa árdua.
Contudo esse esforço é compensado pelos resultados e pela satisfação em resolver questões complexas que podem mudar o rumo da vida das pessoas.