Assinalado anualmente a 7 de abril, o Dia Mundial da Saúde é uma oportunidade para refletirmos sobre os múltiplos fatores que contribuem para o bem-estar físico, emocional e psicológico ao longo da vida. Este ano, sob a luz crescente da consciência sobre saúde mental e desenvolvimento humano, a atenção recai especialmente sobre um tema crucial, mas muitas vezes negligenciado: a infância e o neurodesenvolvimento. Para aprofundar esta reflexão, a Pontos de Vista conversou com Marisa Marques, Psicóloga Clínica e da Saúde, especializada em Infância e Adolescência, e fundadora da Clínica Marisa Marques.
Qual é a relação entre a infância e a promoção da saúde mental ao longo da vida? De que forma o neurodesenvolvimento na infância impacta a saúde mental e emocional na idade adulta?
Atualmente sabemos que a saúde mental é determinada por um leque diverso de fatores, que ultrapassam em larga medida as dimensões exclusivamente centradas na prestação de cuidados. Muitos desses fatores começam numa fase precoce da vida a influenciar e criar marcas significativas no futuro de cada um de nós, em termos de resiliência e de capacidade de adaptação às várias fases do ciclo de vida. Neste sentido, a saúde mental das crianças e adolescentes deve ser considerada como uma área absolutamente crucial e indispensável. Onde 35-50% das pessoas hoje apresentam graves problemas graves de saúde mental e não recebem qualquer tipo de intervenção. Mas pior, estima-se ainda que 8-14% das crianças e adolescentes do mundo vivem com um transtorno mental, sendo que 50% das perturbações mentais nos adultos têm início antes dos 14 anos.
Mais de metade das doenças mentais têm início na infância ou adolescência e os números globais mostram que este é um desafio crescente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a nível mundial, um em cada sete jovens entre os 10 e os 19 anos sofre de uma perturbação mental, representando 15% do peso global da doença nessa faixa etária.
Os primeiros anos de vida de uma pessoa são de extrema importância. A primeira infância é a base que nos permite moldar a nossa saúde física e mental, influenciar o nosso desempenho escolar e a forma como iremos construir a nossa vida em adulto.
A primeira infância corresponde ao período desde o nascimento até aos três anos de idade e é a fase de formação da arquitetura cerebral. É o momento em que o cérebro do bebé se desenvolve a uma velocidade alucinante, nunca mais repetida. Onde mais de 1 milhão de novas ligações neurais surge a cada segundo que passa. Por esta razão, as experiências vividas pelo bebé, especialmente neste período, têm um impacto enorme e duradouro no seu desenvolvimento, podendo formar uma base cerebral forte ou frágil para o seu crescimento, que irá interferir com os processos de aprendizagem, comportamento e saúde, ao longo da sua vida. Pelo que podemos considerar que a infância de um bebé irá, por si, definir a idade adulta do mesmo.
Nos primeiros anos de vida, as experiências e as relações do bebé com os pais e/ou cuidadores têm um efeito extraordinário no desenvolvimento do bebé. Pelo que experiências positivas influenciam na formação de uma arquitetura cerebral que deixando a criança mais apta/ resiliente para superar dificuldades nas idades mais tardias. E, consequentemente, terá um maior sucesso nos processos de aprendizagem, desenvolvendo mais capacidades ao longo da vida, para ser mais saudável, mais madura emocionalmente, mais estruturada e mais feliz, entre outros aspetos benéficos para si mesmo.
No entanto, não é apenas as vivências na primeira infância, mas também fatores genéticos que irão definir e impactar o desenvolvimento do bebé podendo levar a algumas alterações em alguns traços geneticamente herdados. O desenvolvimento humano é, assim, um processo complexo que depende da interação entre os fatores biológicos e as condições ambientais, como as relações sociais, os vínculos afetuosos, os estímulos, a rotina de sono, a alimentação adequada e a atenção à saúde em geral são a base do desenvolvimento humano. Nesse sentido, sabe-se que o desenvolvimento humano é fruto da interação entre a cultura e a herança biológica da espécie.
Além das questões de desenvolvimento humano nos dias de hoje é imprescindível falarmos acerca do Neurodesenvolvimento. Este tem início ainda no período gestacional e vai-se prolongando. Sendo que é durante os primeiros anos de vida que se estabelece a arquitetura cerebral que é a base de todas as etapas posteriores da vida de um ser humano. Pelo que ao longo da Primeira Infância, conseguimos observar o progressivo amadurecimento de diferentes regiões cerebrais e, consequentemente, iremos ver a aquisição e a construção de novas capacidades cada vez mais especializadas e complexas.
Nos três primeiros anos de vida, a arquitetura cerebral passa por intensas transformações estruturais em resposta à interação entre fatores biológicos, experiências e relações interpessoais que a criança estabelece no meio que a cerca. Nesse período, os neurónios presentes no Sistema Nervoso, passam a associar-se e criam redes neurais que se fortalecem à medida que são utilizados com maior frequência. Por sua vez, o fortalecimento destas redes neurais favorece a transmissão de informações previamente adquiridas através das vivências diárias e que passam a ser reproduzidas com maior facilidade, garantindo, desta forma, a aprendizagem e a formação de memórias.
O aumento progressivo das patologias do neurodesenvolvimento atingem cerca de 10 a 20% das nossas crianças. Representam os novos casos de crianças de risco biológico para estas as perturbações de neurodesenvolvimento. São eles os grandes prematuros, as poli-malformativas, as portadoras de doenças neurometabólicas e endócrinas e as que vivenciaram a doença oncológica. Além das crianças com diagnósticos de deficiência intelectual, Perturbação do Espetro de Autismo, as perturbações específicas da linguagem, as dificuldades de aprendizagem escolar, as perturbações de défice de atenção e hiperatividade, os comportamentos disruptivos, como os de comportamento de oposição, a paralisia cerebral e os défices sensoriais profundos, na maioria congénitos, de causa desconhecida, não sendo, portanto, passíveis de prevenção.
Assim podemos afirmar que o desenvolvimento na Primeira Infância tem um impacto bizarro na aprendizagem que dependem diretamente dos períodos sensíveis são “momentos de maior capacidade de modificação e maleabilidade dos circuitos cerebrais em resposta a determinada experiência ambiental”. Assim, os períodos sensíveis garantem maior prontidão biológica do cérebro para a aprendizagem de determinadas capacidades em certos períodos da vida. No entanto, apesar de a capacidade de modulação cerebral (plasticidade cerebral) se manter ao longo do tempo, sabemos que as grandes modulações cerebrais acontecem na primeira infância e permanecem pela vida toda, uma vez que essa plasticidade vai decaindo ano após ano.
Automaticamente, estes fatores, numa fase precoce da vida do ser humano, tem um efeito significativo, modelando extensamente o futuro de cada um de nós em termos de resiliência e de capacidade de adaptação às várias fases do ciclo de vida.
Quais são os principais desafios que as crianças enfrentam atualmente em termos de desenvolvimento cognitivo e emocional?
A estratégia deve integrar quatro domínios interligados: saúde, educação, área social e justiça. Implementando processos inclusivos, visão partilhada e participação da comunidade em todos os locais onde as crianças estão inseridas: família, escola, centro de saúde e locais de lazer e desporto.
Os objetivos centram-se em potenciar as capacidades individuais, competências sociais (planeamento, decisão, resiliência), autoestima e visão otimista do futuro, sendo que a missão de todos (profissionais de saúde e educação e famílias) é preparar a criança para a escola até aos cinco anos e prepará-la para a vida até aos 18 anos.
Nos dias de hoje, os pais têm cada vez dias mais longos de trabalho e menos tempo para a família. Chegar cansado, sem ter uma noite seguida de sono há meses e cuidar de um bebé/criança com algum problema, inevitavelmente aumenta os níveis de ansiedade dos adultos que moram em casa, o que se transmite, involuntariamente, aos mais pequenos, aumentando, por sua vez, os problemas iniciais das crianças.
Como a neuropsicologia pode contribuir para a identificação precoce de dificuldades no desenvolvimento infantil?
A avaliação neuropsicológica infantil e a intervenção precoce têm-se revelado pilares fundamentais no trabalho clínico em crianças com diagnóstico ou suspeitas de perturbações de neurodesenvolvimento. Dado que permite-nos identificar precocemente os déficits cognitivos, comportamentais e emocionais que podem impactar negativamente o desenvolvimento global da criança. Pelo que têm um papel crucial na identificação e na intervenção de perturbações do neurodesenvolvimento, atuando ao nível, não só da redução dos prejuízos associados às perturbações, mas também promove a inclusão social e académica, ressaltando a necessidade de ampliar o acesso a esses serviços em contextos socioeconómicos vulneráveis.
A neuropsicologia infantil consagra uma série de ferramentas clínicas e científicas que nos permitem mapear as capacidades e dificuldades de cada criança, permitindo um diagnóstico mais preciso e tendo como base a elaboração de estratégias de intervenção personalizadas. Isto decorre porque a a neuropsicologia infantil permite identificar padrões atípicos no desenvolvimento que muitas vezes passam despercebidos em avaliações convencionais.
A neurociência juntamente com a neuropsicologia mostrou-nos que a plasticidade cerebral presente nos primeiros anos de vida reforça a relevância da identificação precoce, pois possibilita mudanças significativas na evolução do desenvolvimento infantil. Pelo que, a participação de famílias, educadores e profissionais de diferentes áreas, é fundamental para criar um ambiente favorável às intervenções.
Quais são os sinais de alerta que os pais e educadores devem estar atentos no desenvolvimento das crianças?
O desenvolvimento das crianças segue uma cronologia minimamente flexível, ou seja, estes os períodos sensíveis e cruciais “podem variar entre as crianças, produzindo ritmos diferentes de desenvolvimento e, em algumas situações, levam ao desenvolvimento de perturbações de desenvolvimento quando o ritmo é bastante desfazado do período clinicamente aceitável como estando dentro da normalidade. Por não serem momentos estagnados e inflexíveis na cronologia do desenvolvimento infantil, mas por indicarem períodos em que o cérebro se encontra pronto para desenvolver a maturação de determinadas capacidades.
Sendo que os principais sinais de alerta nos domínios linguístico, cognitivo, comportamental e emocional:
- Atraso na fala e/ou vocabulário limitado;
- Dificuldade em seguir intrusões;
- Dificuldade na aquisição de novas competências;
- Problemas de memória, atenção, concentração,…
- Agressividade excessiva ou comportamento retraído;
- Agitação e /ou hiperatividade
- Tristeza persistente;
- Ansiedade extrema;
- Problemas de autorregulação;
- Dificuldades nas interações sociais;
Entre outros.
Que estratégias podem ser implementadas para promover um desenvolvimento saudável e prevenir dificuldades futuras?
Toda a atuação quer a nível remediativo, preventivo ou de promoção deverá sempre iniciar pela construção de equipas especializadas na Primeira Infância, o que infelizmente ainda não está presente em todas as nossas unidades hospitalares, nem em contextos privados. Tendo como missão primordial e de base a saúde mental e o desenvolvimento na infância através da capacitação de instituições, profissionais e cuidadores. De forma que seja possível atuar nos fatores de risco e fatores protetores da saúde mental e introduzir mudanças positivas na vida das crianças e das suas famílias. Respondendo aos complexos desafios enfrentados pelas crianças, e apoiando o bem-estar e a resiliência das famílias, com especial enfoque naqueles que vivem em situação de risco, de forma a garantir que todas as crianças contam e têm o melhor começo de vida possível.
Como vimos anteriormente, as perturbações de neurodesenvolvimento começando ainda na idade gestacional pelo que neste sentido poderá ser também importante e interessante intervir a nível da Saúde Materna e Infantil – dado que a saúde mental materna é crucial para o desenvolvimento neurobiológico da criança. Desta forma seria possível apoiar a saúde mental durante a gravidez, parto e pós-parto. Não só para prevenir problemas futuros como para produzir benefícios de longo prazo para a saúde, educação e bem-estar social da criança. Bem como direcionar a intervenção para a Vinculação Afetiva e Desenvolvimento, dado que vínculos seguros entre cuidadores e crianças são cruciais para um desenvolvimento saudável. Procurando desenvolver intervenções que possam fortalecer as relações pais-filhos, nomeadamente, até aos três anos, de modo a aumentar as hipóteses de sucesso.
De que forma políticas públicas e iniciativas sociais podem contribuir para um melhor acompanhamento do neurodesenvolvimento infantil?
É consensual que a política para a infância e adolescência deve assentar numa cultura de prevenção.
As crianças, adolescentes e suas famílias terão cada vez mais que ser escutados e envolvidos como agentes ativos em qualquer atuação, quer preventiva quer remediativa. Sabendo que este tipo de envolvências estruturadas, orientadas por adultos que funcionem como tutores de resiliência, contribui para o desenvolvimento positivo de crianças e adolescentes.
Contudo, mesmo com a elevada evolução da sociedade é, ainda, difícil implementar e dinamizar de forma concertada este tipo de projetos e iniciativas sem a presença no terreno de equipas multidisciplinares de saúde mental e de uma sólida colaboração interinstitucional. Pelo que, se calhar, o primeiro passa pela construção destas equipas especializadas e, acima de tudo, empreendedoras.
Qual é a importância de uma abordagem multidisciplinar (envolvendo psicólogos, pediatras, educadores, etc.) no acompanhamento do desenvolvimento infantil?
Há ainda um longo caminho a percorrer para a construção e otimização da rede de cuidados de saúde mental na idade pediátrica. Certamente que o reconhecimento recente do peso das experiências adversas da infância como o problema mais relevante para a saúde pública e para a génese das doenças mais comuns dos adultos vai exigir uma mudança de paradigma e um maior investimento nesta área. Mas a realidade é que o caminho ainda está muito aquém de ser sustentável através de equipas multiprofissionais específicas, organizadas sob a forma de serviço ou de unidade funcional, de acordo com a dimensão da população alvo, e sob a responsabilidade de um psiquiatra da infância e da adolescência.
Com o avanço da tecnologia e o aumento da exposição digital, como podemos equilibrar os benefícios e os riscos para o neurodesenvolvimento das crianças?
O avanço da tecnologia e o aumento da exposição digital, atualmente, é alvo de discussão entre os corpos clínicos devido ao seu impacto no desenvolvimento das crianças. A curiosidade natural das crianças promove a aprendizagem e a criatividade, sendo essencial que os adultos orientem este processo com atenção e afeto. Pelo que o tempo partilhado em família, mesmo que seja limitado, é crucial para desenvolver competências fundamentais, como linguagem, coordenação motora e gestão emocional.
Contudo, o uso desadequado de ecrãs (telemóveis, tablets, televisões e consolas) tem efeitos diretos e indiretos no desenvolvimento da criança:
Impacto na saúde: Pode causar miopia, prejudicar a qualidade do sono e aumentar o risco de obesidade e doenças cardiovasculares.
Interferência na aprendizagem: Reduz o tempo para tarefas essenciais, como estudo e trabalhos de casa, comprometendo a memorização e a responsabilidade.
Consequências emocionais: Exposição a conteúdos violentos ou inadequados pode gerar ansiedade, depressão e até incitar hábitos prejudiciais, como o consumo de tabaco e álcool.
Além disso, o uso precoce e excessivo de dispositivos digitais pode comprometer a interação familiar, limitando a qualidade das trocas verbais e afetivas entre pais e filhos e, consequente, leva ao desenvolvimento de estilos de vinculação tóxicos.
Qual mensagem deixaria sobre a importância de cuidar do desenvolvimento infantil para garantir uma sociedade mais saudável no futuro?
Pessoalmente, sinto que, como Psicóloga, que é imprescindível manter uma visão integradora centrada nas crianças, nos jovens e nas famílias, reforçando as relações terapêuticas e procurando a gradual compreensão das dinâmicas dos vários sistemas (as escolas, os profissionais que compõem redes de apoio, os centros de saúde, os espaços públicos onde os jovens interagem, entre muitas).
Como já sabemos metade das doenças mentais do adulto começam antes dos 14 anos, mas muitas vezes não são reconhecidas nem tratadas a tempo. Este atraso no diagnóstico compromete não só a saúde mental futura, mas também o desempenho escolar, a socialização e as oportunidades na vida adulta. “Quando existe uma perturbação mental, quanto mais cedo for identificada e tratada, melhor”. A intervenção precoce pode fazer a diferença no sucesso do quadro clínico:
0-5 anos:
- Dificuldade em estabelecer vínculo com os pais;
- Falta de interesse pelo ambiente ou dificuldade em interagir;
- Problemas graves de sono ou alimentação sem causa física;
- Birras muito intensas e frequentes;
- Atrasos significativos na linguagem ou motricidade.
6-12 anos:
- Recusa persistente em ir à escola;
- Dificuldades de aprendizagem sem explicação pedagógica;
- Ansiedade extrema ou medos irracionais;
- Isolamento social ou dificuldades em criar amizades;
- Agressividade excessiva ou comportamentos desafiadores;
- Queixas físicas frequentes sem causa médica.
13-18 anos:
- Tristeza profunda e duradoura, falta de motivação ou energia;
- Alterações graves do sono e apetite;
- Automutilação ou ideação suicida;
- Comportamentos de risco (consumo de substâncias, agressividade);
- Distúrbios alimentares (restrição alimentar, vómitos autoinduzidos);
- Isolamento social severo ou rejeição de atividades antes apreciadas.
O cérebro da criança é bastante flexível e a primeira infância constitui uma grande janela de oportunidades para potenciar e fazer toda a diferença no seu desenvolvimento pleno, quer seja físico, cognitivo ou socioemocional. Quanto mais cedo investirmos na vida das nossas crianças, melhores adultos teremos no futuro.
Além da nutrição e dos cuidados de saúde primários, os bebés e as crianças devem crescer, aprender e desenvolver-se num “ninho” de amor, carinho, atenção e responsabilidade às suas necessidades e estímulos mentais. Sabermos compreender os estágios de desenvolvimento infantil e o desenvolvimento cerebral de cada bebé permite-nos desmontar algumas ideias pré-concebidas, saber o que esperar e como estimular o bebé ao longo do seu crescimento.