Com mais de 30 anos de experiência num setor tradicionalmente masculino, Carla Borges é hoje uma referência de resiliência, visão e autenticidade na área da Engenharia e Construção. Sócia fundadora da de.Gaveto, Lda, Carla partilhou nesta conversa com a Revista Pontos de Vista, reflexões sobre equilíbrio pessoal e profissional, a evolução da presença feminina na Construção, os desafios da maternidade num setor exigente e o que ainda falta mudar para que o tema da “liderança feminina” possa finalmente deixar de ser notícia. Inspirada não por figuras externas, mas por um caminho construído com convicção, Carla resume a sua jornada com clareza.
Como começou a sua jornada na área da construção? Houve algum momento-chave que a fez perceber que este seria o seu caminho?
Não tenho presente qualquer momento chave, simplesmente sempre quis “fazer casas”, pelo que desde cedo fui direcionando o meu percurso nesse sentido.
Na escola primaria desenhava casas, não que tivesse muito jeito, mas era o que gostava de desenhar. Mais tarde adorava olhar à minha volta e reproduzir em desenho as casas que via. No ensino secundário, quando fazíamos trabalhos, tentava sempre direcionar para desenho de casas, ou maquetes de casas. Não variava muito, pelo que não via outro caminho a seguir que não fosse o que segui.
Quais foram os principais desafios que enfrentou ao entrar neste setor, tradicionalmente masculino? E quais as conquistas que mais marcaram o seu trajeto de 30 anos de experiência nesta área?
Como entrei muito jovem no mercado de trabalho, tive aliado ao fato de ser mulher, a tenra idade. Por um lado, achavam piada, mas quando viam que deviam seguir as minhas indicações, a coisa era mais complicada. Tinha de recorrer a pequenos estratagemas para conseguir “levar a água ao moinho”. O início não foi fácil, mas demorou pouco tempo a conquistar a confiança da equipa e dos superiores. Numa das primeiras empresas onde trabalhei, foi-me mesmo dito na primeira conversa com o meu superior que o trabalho das obras era para homens, pelo que eu tinha de ser melhor que eles para poder estar ali. Na altura respondi à letra, e não levei aquilo muito a sério, até porque não estava muito preocupada com o facto de ser homem ou mulher, mas sim com o desenvolver o meu trabalho e aprender. Anos mais tarde, pensando nesse episódio tive consciência do que ele representava na verdade. Com a mudança de empresa, acontecia sempre haver alguma resistência, embora, hoje, com a devida distância, considere que na maioria das vezes era a resistência natural de alguém que chega de novo, e não o facto de ser mulher.
O que diferencia, na sua visão, uma liderança feminina no setor da Engenharia?
Creio que as mulheres são mais conciliadoras, habitualmente são mais emotivas aliviando a racionalidade que por vezes é difícil de aceitar por algumas pessoas. Não creio que seja uma diferença que exista apenas no sector da Engenharia, embora, como sabemos, este seja um setor de raízes tradicionalmente masculinas.
Como descreveria o seu estilo de liderança? Ele evoluiu ao longo do tempo?
Não sei se podemos definir como um estilo a forma como lidero as minhas equipas, mas sigo normalmente o caminho do exemplo, a abordagem dos temas com a equipa de forma a obter as várias visões e dai acrescentar algo à estratégia que me parece a mais adequada. Gosto de envolver as pessoas nas decisões, dar liberdade e responsabilidade.
Acredita que as mulheres trazem uma abordagem única em relação à resolução de conflitos e tomada de decisões nesse setor?
Creio que sim, pelo que referi anteriormente, trazem alguma emoção e sensibilidade na resolução de conflitos, e tomada de decisões, sejam elas resultantes dos próprios conflitos ou outras. O que me parece na verdade é que para chegar ao mesmo resultado, as mulheres, se for necessário, fazem um caminho mais longo, de forma a convergir os diferentes pontos de vista, evitando assim que os envolvidos se desgastem ou desgastem a relação da equipa.
Como o propósito da de.Gaveto, Lda se conecta com seus valores pessoais?
Sendo a de.Gaveto, Lda uma empresa onde sou uma das duas sócias fundadoras, é natural que o propósito e a cultura organizacional seja um reflexo do que fomos vivendo e evoluindo ao longo do percurso. Na verdade, quando criamos a empresa, o nosso propósito era o de criar um projeto próprio, que com base na competência técnica, eficiência e proximidade, criasse valor para os clientes e para a nossa organização. É o que temos vindo a desenvolver, pois tudo aquilo em que nos baseamos são os valores que temos e que traspusemos para a empresa: proximidade, sustentabilidade, integridade, inovação e compromisso.
De que forma promove uma cultura organizacional baseada em colaboração e diversidade de perspetivas?
A nossa cultura organizacional assenta na colaboração de todos os envolvidos, e na diversidade de perspetivas, que se torna maior quanto maior forem os intervenientes. Temos colaboradores internos e várias empresas com quem trabalhamos, com as quais debatemos os assuntos de forma a chegarmos a um objetivo comum e que vá de encontro ao solicitado pelos clientes. Com a diversidade de cada pessoa envolvida, por vezes somos surpreendidos com os resultados que obtemos com a participação de todos.
A Construção exige um trabalho extremamente colaborativo entre diversas áreas e profissionais. Como a colaboração é incentivada e praticada na de.Gaveto, Lda?
Diria que tem sido uma situação natural, pois desde sempre que temos como princípio envolver as várias entidades para delinear a trajetória dos projetos, acabamos por ser bem-sucedidos e é isso que nos motiva ainda mais a fazer ainda melhor. Temos desafios, e nem todos os projetos correm como desejávamos, mas é exatamente por todos estarmos envolvidos, que as dificuldades se resolvem de forma mais eficaz.
Como equilibra as decisões da liderança com a vida pessoal e o bem-estar? Existe espaço para esse equilíbrio no setor?
Fazendo uma ginástica muito grande. Aqui sim, acho que será mais difícil para uma mulher, principalmente se for ou quiser ser mãe. Ainda estamos um pouco atrasados nesta matéria, pois, inevitavelmente é a mulher que tem o filho durante 9 meses consigo, e tem a tarefa da amamentação, para alem de todos as outras onde participa na educação dos filhos. Esse tempo, dificilmente consegue ser compensado por outrem, trazendo uma taxa de “absentismo” maior do que no caso dos homens, pelo que se torna, infelizmente, complicado o equilibro da sua vida pessoal com a profissional.
Quando querem ter filhos, vão adiando com receio de virem a perder o lugar na empresa ou até mesmo o emprego. Quando têm os filhos, há um conjunto de situações que tem de acompanhar que do ponto de vista da empresa ainda não é muito bem visto. Eu própria fui mãe há 3 anos, e apesar de ter a minha empresa, reconheço que é difícil gerir essas situações. No que diz respeito às decisões de liderança, a vida pessoal não tem interferência, apenas identifico uma gestão diferente do tempo.
O que mudou nos últimos anos em relação à presença feminina na Construção?
Creio que, como em outros setores, a presença feminina tem vindo a aumentar e a ter um maior impacto na vida de todos. Sinto também que já é reconhecido por uma grande parte dos homens e das mulheres a competência destas, neste e em outros sectores de cariz tradicionalmente mais masculino.
Como observa o futuro da liderança feminina no setor? Há algo que ainda precisa ser transformado com urgência?
Acima de tudo, gostava de chegar a um patamar em que não houvesse necessidade de se falar na liderança feminina como algo que ainda tem de ser falado, por necessitar de ser reconhecido. Creio que estamos todos a fazer esse caminho, mas acho que de forma lenta. Na verdade, falamos de igualdade de oportunidades, mas devíamos também falar em igualdade de mentalidades.
Que conselhos daria para jovens mulheres que estão entrando ou pensando em entrar na Construção?
Diria aquilo que me norteou na escolha do meu percurso, devem fazer aquilo que as fizerem felizes, independentemente dos estereótipos que a sociedade cria. Se fizermos aquilo que gostamos e que nos faz feliz, as adversidades que surgem pelo percurso tem uma intensidade moderada, e estamos mais preparadas para as ultrapassar.
Existe alguma mulher que a inspira, dentro ou fora do setor?
Não tenho nenhuma mulher que me inspira, sempre segui aquilo em que acreditei, sem me importar com o que diziam à minha volta, estive sempre empenhada a viver a minha vida e a fazer de mim uma mulher mais culta, trabalhadora e focada, nunca procurando uma inspiração. Gosto de várias mulheres quando sei da sua história e reconheço a capacidade de cada uma de se superar, mas não tenho uma que se destaque.
Se pudesse resumir o seu trajeto numa frase, qual seria?
Foco no objetivo sem olhar para as coisas menos boas que vão surgindo no caminho.