Miguel Leal Rato | Centro de Responsabilidade Integrado de Esclerose Múltipla (CRIEM) | ULS São José, Lisboa
A esclerose múltipla é uma doença autoimune crónica e pouco frequente. Apesar de
ser mais frequente em mulheres de idade jovem, pode manifestar-se em qualquer
faixa etária e em pessoas de qualquer sexo.
O sistema imunitário – que é responsável pela vigilância e controlo de infeções, vírus,
bactérias, e outras coisas estranhas – costuma ignorar o próprio corpo. No entanto,
nas doenças autoimunes este mecanismo de tolerância falha, causando um ataque do
sistema imunitário contra algumas partes do nosso corpo. Na esclerose múltipla este
alvo é o sistema nervoso central, o que inclui o cérebro (que nos faz pensar, sentir,
mexer), o cerebelo (que coordena o nosso equilíbrio), a medula espinhal (por onde
passam todos os nervos que conectam o cérebro com as diferentes zonas do corpo) e
o nervo óptico (que leva a informação do nosso olho ao cérebro, e nos permite ver).
Ainda que não seja completamente claro porque é que alguém tem esclerose múltipla,
sabemos que alguns genes dão um risco aumentado para a doença. Por outro lado, o
ambiente é também muito relevante para que a doença se manifeste, incluindo os
vírus com que tivemos contacto na infância e adolescência (entre eles, o vírus Epstein-
Barr), o excesso de peso, os níveis de vitamina D no sangue, o tabaco, entre outros.
Os neurónios do nosso sistema nervoso comunicam uns com os outros através de
pequenos impulsos elétricos. Os sintomas da esclerose múltipla são uma
consequência da inflamação do cérebro e da destruição da bainha de mielina dos
nossos neurónios, em tudo semelhante ao isolamento de borracha dos fios elétricos
em nossa casa. No geral, esta destruição do isolamento dos neurónios faz com que
estes impulsos elétricos não cheguem tão bem onde deviam. Assim, os sintomas
variam de acordo com a zona do sistema nervoso central onde este ataque acontece.
Por exemplo, se a inflamação ocorrer no nervo óptico (uma nevrite óptica), há uma
alteração da visão com sensação de névoa / desfocado de um olho, as cores ficam
menos vivas, e o olho dói quando olhamos de um lado para o outro. Se a inflamação
for na medula espinhal (uma mielite), pode existir uma alteração do andar, diminuição
da força dos braços ou pernas, alteração da sensibilidade (dormência, formigueiros,
choques elétricos), ou alteração da função sexual, da bexiga ou intestinos. Nas
pessoas com esclerose múltipla, estes sintomas podem aparecer e resolver com o
tempo em surtos (com ou sem sequelas) ou ir agravando lentamente ao longo do
tempo (progressivos).
Nem sempre é fácil chegar a um diagnóstico de esclerose múltipla porque alguns
sintomas são difíceis de avaliar (como fadiga, alteração cognitiva, dor, e alterações do
humor) ou podem ser causados por outras doenças. Normalmente, a doença é
diagnosticada após consulta de neurologia onde é feito um exame neurológico, são
revistos exames de imagem como a ressonância magnética (que permite ver as lesões
inflamatórias no sistema nervoso), e outros exames como a punção lombar para
análise do liquido cefalorraquidiano que rodeia o nosso cérebro e medula espinhal.
Uma vez feito o diagnóstico correto, a nossa prioridade é evitar que o sistema
imunitário continue a danificar o sistema nervoso e prevenir a acumulação de
incapacidade neurológica decorrente das sequelas. Para isto, temos hoje disponíveis
um número crescente de medicamentos de alta eficácia que modificam a forma como
o sistema imunitário funciona e tentam impedir este ataque. Já há medicamentos em
comprimidos, em injeções subcutâneas e em injeções endovenosas feitas em hospital
de dia ou no domicilio. A gestão da pessoa com esclerose múltipla passa não só pela
avaliação do médico e pela escolha do melhor tratamento para cada situação, mas
também por uma avaliação multidisciplinar em que várias classes de profissionais de
saúde trabalham de forma coordenada para decidir o melhor plano para cada pessoa:
neurologistas, neurorradiologistas, enfermeiros, farmacêuticos hospitalares,
neuropsicólogos, psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais, fisioterapeutas, e
médicos de várias especialidades importantes neste seguimento (urologia,
ginecologia/obstetrícia, psiquiatria, infeciologia, entre outros).
Houve uma verdadeira revolução nos tratamentos e abordagem desta doença nos
últimos 20 anos, e a esperança é que nos próximos anos todos os esforços de
investigação científica e ensaios clínicos, nacionais e internacionais, continuem a
resultar em melhores tratamentos e numa melhor qualidade de vida para as pessoas
que vivem com esclerose múltipla.