“A saúde mental é uma escolha diária e um caminho de autoconhecimento, empatia e reconexão com a nossa essência”

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Num mês em que o mundo volta o olhar para a importância da saúde mental, a Revista Pontos de Vista destaca o percurso inspirador da Dra. Domingas Tavares Francisco, Fundadora e Diretora Geral do Colégio Luar do Saber, uma instituição de referência em Angola que alia excelência académica a um profundo compromisso com o bem-estar emocional de alunos, professores e famílias. Nesta conversa inspiradora, falamos sobre o percurso pessoal e profissional que a levou a unir a Sociologia à Saúde Mental, a filosofia que orienta o projeto do Colégio Luar do Saber, e a urgência de integrar a alfabetização emocional nos processos educativos desde cedo.

Como surgiu a sua paixão e dedicação pela área da Sociologia e, em particular, pela Saúde Mental Integrativa e Sistémica?

A Sociologia, a menina dos meus olhos, surgiu por intermédio de um questionamento interno: tive sempre a curiosidade em compreender o porque é que os homens traem. Na altura, com 17 anos, achei que a psicologia não me daria a resposta na mesma proporção em que eu percebia a problemática, pois, na minha visão, as respostas iam além das questões de personalidade e de escolhas individuais.

Por sua vez, a saúde mental integrativa e sistémica emergiu, igualmente de outro questionamento interno: percebi que existem situações, na nossa vida, que se manifestam e se repetem, obedecendo a um padrão de comportamento e de mentalidade.

 

De que forma essa visão se reflete no seu trabalho diário enquanto Diretora Geral do Colégio Luar do Saber?

A minha veia sociológica, aliada aos conhecimentos sistémicos, ajudam-me a exercer um tipo de liderança emocionalmente equilibrada, independente e contextualizada no tempo e no espaço: cada funcionário carrega uma história de vida que impacta diretamente os resultados da empresa. Portanto, os bons e maus resultados estão nessa interface entre quem eu sou como pessoa e gestora e quem os meus funcionários são como pessoas e empregados. Não acredito que seja possível fazer-se a separação entre as esferas pessoais e profissionais: elas são complementares e deveriam ser compreendidas numa perspetiva integrada.

 

O Colégio Luar do Saber é hoje uma referência na educação. Quais têm sido os principais pilares e valores que orientam a sua gestão?

Comunicação assertiva e empática, foco na solução e resolução de problemas, valorização dos colaboradores, respeito pelas individualidades, capacidades e competências. Na minha gestão, há espaço para se ser e para se estar, pois, a nossa causa única é colocar cada criança no centro do processo educativo.

 

Que iniciativas específicas o Colégio tem implementado para promover a saúde mental e o bem-estar dos alunos?

O nosso gabinete de psicopedagogia, em parceria e total alinhamento com a equipa pedagógica, tem se dedicado a garantir que cada criança, funcionário e comunidade educativa tenham acesso, por intermédio de workshops, palestras e consultas de acompanhamento em psicologia, aos princípios básicos da saúde mental: cuidar de si, para melhor cuidar do outro!

 

Quais são, no seu entender, os maiores desafios enfrentados pelas crianças e jovens em termos de saúde mental no contexto atual?

Os desafios enfrentados pelas crianças e jovens, quer no sistema educativo, quer fora dele, estão diretamente vinculados à educação que receberam dos seus educadores/progenitores e a forma como viram estes últimos a lidar com as próprias emoções. A ausência de saúde mental, não se refere à inexistência de problemas ou dificuldades: está relacionada com o modo como fazemos a gestão das emoções diante do caos.

Uma criança que não aprendeu, por via do exemplo prático, a lidar com as emoções que lhe causavam desconforto, muito provavelmente, na vida adulta vai terceirizar a culpa e, assim, aumentar o seu estado de sofrimento interno.

 

Como o Colégio acompanha não só os alunos, mas também as suas famílias, no desenvolvimento de uma abordagem mais saudável e sistémica?

Essa temática é, sem qualquer dúvida, um dos muitos desafios que teremos enquanto existirmos como instituição de ensino idónea e madura.

Separar a educação da instrução, demonstrando, que tanto os gestores escolares, assim como os encarregados de educação precisam estar em total alinhamento para garantirmos, em conjunto, um ambiente emocionalmente seguro e estável para cada criança, é um dos temas centrais, quer das reuniões de pais, quer do trabalho que a nossa psicóloga, diretora pedagógica e professores desenvolvem ao longo de todo o ano letivo.

Por um lado, relembro à equipa a importância de abraçarmos as crianças, de darmos beijinhos e de perguntarmos como se sentem, dentro e fora da escola.

Por outro lado, reforço a humanização e o atendimento de proximidade que devemos implementar, para garantir que os encarregados de educação encontrem em nós uma porta aberta para a solução que procuram. Somos parceiros da inclusão, da solução e da integração, por uma Angola e por um mundo melhor!

 

Na sua experiência, como podem os pais e encarregados de educação ser parceiros ativos na promoção da saúde mental dos filhos?

A resposta a essa questão, a meu ver, não parte de ações externas. Começa, antes, na forma como os adultos lidam, diariamente, com as suas próprias emoções. De todo o caminho já percorrido, de todos os estudos científicos e abordagens terapêuticas testadas, na minha ótica, as nossas crianças e jovens precisam de modelos concretos, de ações diárias desencadeadas pelos adultos de referência para que, aos poucos, compreendam a profundidade e o papel que as emoções têm na nossa vida. Os adultos precisam aprender a conhecer e a gerir as próprias emoções para que as crianças, por via da modelagem comportamental, possam, de igual modo, dar os primeiros passos na promoção de um quadro de saúde mental, trabalhado de dentro para fora.

 

Que papel deve desempenhar a comunidade escolar no apoio às famílias?

A comunidade escolar tem vindo a tornar-se num dos principais pontos de referência no acompanhamento e direcionamento dos estudantes e das respetivas famílias. A (des) estruturação do mercado de trabalho, a imposição de horários laborais cada vez mais longos e pouco flexíveis, a cultura do “presentismo”, a alteração das estruturas familiares (famílias monoparentais ou reconstituídas), entre outros fatores têm acarretado uma responsabilidade crescente ao posicionamento, quer das instituições de ensino, quer da comunidade escolar no geral. Nesse sentido, o âmbito de atuação destes organismos tem de ser capaz de assegurar que as famílias e os educadores são, por excelência, espaços emocionalmente seguros, para que cada criança consiga encontrar o seu verdadeiro lugar no mundo. E, isso só se consegue mantendo uma relação de proximidade e de diálogo permanentes.

 

De que forma avalia a situação da saúde mental em Angola, tanto nas escolas como na sociedade em geral?

Os desafios que envolvem a temática da saúde mental não dizem respeito, somente, à uma geografia: são, hoje, questões globais, instigações da modernidade, em muito exacerbadas pelos avanços tecnológicos e pelo grau de exposição que as esferas da vida privada ganharam no quadro público. O cenário de vida atual tem desencadeado um conjunto padronizado de comportamentos (nas vertentes profissionais, pessoais e familiares), onde se verifica uma busca incessante, e quase cega, pelos mesmos resultados, nas mesmas dimensões, quando, na verdade, somos seres com caraterísticas irrepetíveis e histórias de vida únicas. Portanto, sinto que tem faltado saúde mental na sua aceção mais genérica, em todas dimensões da vida humana, em diversas geografias e, sobretudo, nas escolas, onde o tema deveria estar minimamente equalizado.

 

Que avanços já se notam e que aspetos considera ainda urgentes de serem trabalhados?

O principal e mais importante avanço que a geração atual trouxe, foi, declaradamente, o assumir de que as “coisas” não estão bem. A minha geração (década de 80) herdou uma visão de vida baseada no “ter”, mas, a certa altura, sentiu que as compensações materiais, fruto do trabalho árduo e consistente não são o ponto crucial para uma vida mais leve e emocionalmente estabilizada. Todavia, a materialização dessa visão ainda é escassa, pouco sustentada e, nalguns setores, marginalizada, pois “quem interrompe os seus afazeres para cuidar da saúde mental, da depressão, do esgotamento ou dos transtornos de ansiedade é quem não tem contas a pagar”.

 

Pode explicar como a abordagem integrativa e sistémica pode contribuir para a prevenção e tratamento de problemas de saúde mental?

O saudavelMENTE, o meu programa sobre saúde mental integrativa e sistémica, aborda as questões da mente e do fórum emocional numa perspetiva global. A visão integrativa defende que o ser humano é um conjunto de três corpos: mente, corpo e espírito. Por sua vez, o prisma sistémico, vem da abordagem proposta pelas constelações familiares sistémicas, uma técnica terapêutica baseada na fenomenologia, que sustenta que grande parte das nossas escolhas e decisões da vida atual, estão, na verdade, vinculadas ao nosso sistema familiar de origem.

 

Que metodologias ou práticas mais utiliza nesta perspetiva?

Não trabalho propriamente com uma metodologia ou prática concreta. Na verdade, cada sessão terapêutica acaba por ter a sua própria dinâmica, tal como propõe a abordagem fenomenológica: não sei se existirão métodos universais eficazes para todos na mesma proporção, pois cada pessoa carrega a sua própria história de vida e, portanto, esta deve ser analisada à luz do seu contexto e determinantes sociais.

 

Qual a importância de assinalar o Dia Internacional da Saúde Mental, em Outubro, para sensibilizar e abrir espaço a este debate?

É imprescindível que haja uma data no calendário que assinala essa dimensão tão urgente da vida humana, é sinal de que todos reconhecemos a relevância de se dedicar tempo em encontrar formas de a materializar. Mas é, simultaneamente, perigoso pensar somente nela nessa mesma data. E o que sinto é que, de vez em quando, vamos nos lembrando que ela existe. Não gosto disto! Não gosto de falar em saúde mental somente em setembro, em homenagem ao “setembro amarelo” ou em outubro quando, nos restantes dez meses, milhares de pessoas tiram a vida ou entram em depressão, porque não encontraram forças para sair do “fundo do poço”.

 

Que mensagem gostaria de deixar à sociedade sobre a necessidade de valorizar a saúde mental desde cedo?

Do mesmo modo que falamos em alfabetizar as crianças, para que melhorem o seu desempenho escolar e, futuramente, a sua vida adulta em sociedade, também devia ser obrigatório praticarmos a alfabetização das emoções. De todas as ferramentas e conhecimentos que levamos para o mundo profissional, familiar e pessoal, o campo das emoções continua obscuro e quase que sem rumo. Também devia ser obrigatório explicarmos às nossas crianças que não existem emoções boas ou más: existem somente emoções e todas elas devem ser experimentadas, pois desempenham um papel fundamental na construção da nossa personalidade enquanto seres sociais.

 

Quais são os projetos futuros que gostaria de destacar, seja no Colégio Luar do Saber, seja na sua atuação enquanto socióloga?

No que respeita ao Luar do Saber, a ideia é continuar a diversificar as nossas competências de atuação, de modo a garantir que cada estudante encontre na escola um ambiente de experimentação. Sinto que passei demasiados anos sentada numa carteira, de forma passiva, a ter contacto com o mundo teórico. Contudo, a vida adulta, pelo contrário, exigiu-me mais a vertente prática, bastante resiliência e um grau elevado de gestão das emoções. É com base nessa narrativa que, em equipa, vamos pensando em áreas com forte potencial de inovação e geração de valor para os nossos estudantes. Por exemplo, no corrente ano letivo apostamos nas aulas de corte e costura como forma de reforçar a importância de qualquer profissão, independentemente do status socialmente construído e hierarquia atribuída. A nível pessoal, enquanto socióloga, estou em fase de estruturação de um projeto no ramo da maternidade e conciliação das esferas pessoais, familiares e profissionais das mulheres, outra temática mais que urgente.

 

Que legado espera deixar na área da educação e da saúde mental?

Quero muito explicar às pessoas a urgência em reaprendemos a “sentir”. Deixamos de o fazer desde que passamos a confiar a justificação dos acontecimentos na ciência erudita e infalível. É como se confiássemos mais nos estudos científicos e na autoridade socialmente construída em torno da sua verdade do que em nós. Afastámo-nos da nossa intuição. Adoecemos as empresas, as famílias, as amizades; asfixiamos a nossa criatividade, autenticidade e essência. Por todas essas razões e muitas mais, quero construir uma escola que acredita, respeita e enfatiza a essência de cada criança. Talvez, assim, não tenhamos de nos preocupar em assinalar o dia da saúde mental, de tão normalizado que se tornará.

 

Que mensagem gostaria de transmitir aos leitores da Revista Pontos de Vista, especialmente neste mês de celebração do Dia Internacional da Saúde Mental?

Não olhem para fora ou para o lado, olhem para dentro; celebrem o silêncio, pois é nele que encontrarão grande parte das respostas que procuram; afastem-se de ambientes (familiares, profissionais, amizades, notícias/informação) negativos e emocionalmente doentes; a dor, assim como o passado, não são lugares de permanência, são lugares de força para a construção de um presente e um futuro com mais harmonia e intencionalidade; não existem erros, existem somente aprendizagens, pois todo o caminho que escolhemos percorrer, ainda que de forma inconsciente, tem uma lição e propósito para a nossa vida; ganhem dinheiro, mas priorizem sempre a leveza, a empatia, a compaixão e a escuta ativa, vossa e dos que vos rodeiam; tenham filhos, eles são a maior fonte de amor puro e de renovação interior, acreditem. Façam meditação, pratiquem yoga e sejam muitos felizes.

E, lembrem-se, a saúde mental é uma escolha diária, um caminho nada linear, mas altamente libertador!

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Revista Pontos de Vista Edição 144

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