OPINIÃO DE Ricardo Ferandes, especialista em Medicina Interna
Diretor do Serviço de Cuidados Paliativos da Unidade Local de Saúde Gaia e Espinho
Neste Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, abrimos espaço à reflexão sobre as inúmeras questões que deles emergem. Uma questão é como uma chave invisível: abre portas que nem sabíamos existir, permitindo ver, fazer e ser de forma diferente. O verdadeiro poder de uma questão não está na resposta que exige, mas no horizonte novo que desperta — em quem a formula e em quem a escuta, seja a nível pessoal, comunitário ou nos sistemas de saúde.
O fio do tempo une passado, presente e futuro, lembrando-nos que o cuidar nunca é estático. Como encarou a humanidade a vida e a morte ao longo da história? Já pensámos que a forma como hoje cuidamos dos doentes graves é fruto de séculos de transformações culturais, sociais e médicas? As perguntas de hoje são herdeiras do passado e sementes do futuro.
Na Antiguidade, a morte era um acontecimento comunitário: vivia-se e morria-se em casa, rodeado por família e vizinhos. O sofrimento fazia parte da vida, mas rituais davam-lhe sentido. Ficou-nos a lição de que ninguém deve morrer sozinho e que a presença humana é parte do cuidado.
Na Idade Média, os hospitais ligados a instituições religiosas acolhiam peregrinos, pobres e frágeis. O cuidado era espiritual, mais do que médico: acompanhava-se a alma na sua passagem. Dessa herança nasceu um princípio central dos Cuidados Paliativos: a integração da dimensão espiritual e do respeito pelas crenças de cada pessoa.
Com o Renascimento e os avanços dos séculos XVIII e XIX, a medicina centrou-se na cura. Vacinas, antibióticos e cirurgias sofisticadas salvaram vidas, mas afastaram a morte para dentro dos hospitais. A ciência ganhou poder, mas a pessoa muitas vezes perdeu voz. É aqui que os Cuidados Paliativos recordam: o doente deve estar no centro, com autonomia e dignidade, e não apenas a doença.
No século XX, as doenças infeciosas deram lugar às crónicas: cancro, insuficiências, demências. A medicina prolongou a vida, mas nem sempre assegurou qualidade. E surgiram as perguntas inevitáveis: o que é cuidar quando já não é possível curar? Como aliviar a dor e o sofrimento?
Foi então que Cicely Saunders, nos anos 1960, fundou em Londres a primeira unidade de Cuidados Paliativos, introduzindo o conceito de “dor total”: física, psicológica, social e espiritual. A sua visão deu origem a uma filosofia de cuidado ainda hoje atual: aliviar o sofrimento, respeitar a dignidade, integrar a família, trabalhar em equipa e afirmar a vida sem antecipar nem prolongar a morte.
No século XXI, os Cuidados Paliativos já não são apenas para os últimos dias. Entram cedo, acompanham trajetórias complexas e oferecem controlo de sintomas, comunicação honesta, apoio emocional e espiritual. São resposta necessária a um tempo em que vivemos mais anos, mas muitas vezes frágeis e dependentes.
As virtudes são claras: dignidade, compaixão, integração da ciência. Mas persistem vicissitudes: falta de recursos, de formação especializada e o estigma que os associa apenas ao fim de vida.
E a pergunta que fica é: que lugar queremos dar a estes cuidados na nossa sociedade? Se temos conhecimento, recursos e séculos de experiência, não será essencial garantir que mesmo com doença a vida seja vivida com conforto, dignidade e qualidade?
A história mostra-nos que cuidámos sempre uns dos outros, de modos distintos em cada época. Mas hoje, nos Cuidados Paliativos, revela-se talvez a essência mais clara do humano: cuidar para além da cura, estar presente para além do tratamento, afirmar a dignidade mesmo quando já não há vitória possível sobre a doença. Porque cuidar até ao fim é, afinal, afirmar o valor da vida em toda a sua grandeza e fragilidade.


