“Ganhei clareza no meu propósito actual: Empoderar outras Mulheres”

Num percurso profissional marcado pela procura constante pelo autoconhecimento e propósito, Sara Almeida e Silva traçou uma história singular na Advocacia. Ao superar dúvidas e desafios, a mesma encontrou na defesa dos direitos e no apoio ao empreendedorismo feminino a sua missão. Nesta entrevista, mergulhámos na sua visão sobre a igualdade de género no ambiente jurídico e nas iniciativas necessárias para promover a equidade nas organizações.

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Como advogada em prática individual, gostaríamos de começar por explorar um pouco o seu percurso profissional. Poderia partilhar connosco alguns dos desafios e conquistas que enfrentou ao longo da sua carreira para alcançar o sucesso que tem hoje?
O meu percurso profissional não foi linear. Fugi ao padrão tradicional de acabar o curso e ingressar de imediato numa profissão jurídica. Quando concluí Direito, tinha muitas dúvidas sobre o caminho profissional a seguir. Não sou daquelas pessoas que, desde criança, tem o sonho de ser advogada e o mantém até à idade adulta, sem passar por mil e uma dúvidas. Ao longo da adolescência, fui-me sentindo dividida entre o direito e outras áreas e, por isso, foi muito difícil escolher apenas uma. Aos 18 anos, escolhi o Direito e, apesar das dúvidas e dificuldades que surgiram no caminho, mantive-me focada em concluir o Mestrado no timing devido, movida pela convicção de que com o Direito, poderia lutar contra muitas injustiças que via à minha volta e me revoltavam. Quando saí da faculdade, vi-me confrontada com inúmeras possibilidades de escolha de profissões ligadas ao Direito e sentia que tinha muito ainda para explorar e evoluir enquanto pessoa. Antes de concluir o estágio da Ordem dos Advogados, passei por experiências profissionais diversificadas, algumas fora da área jurídica, que me fizeram crescer, conhecer-me melhor e perceber que era a advocacia que queria abraçar. Portanto, um dos maiores desafios foi o autoconhecimento e perceber exactamente qual a minha missão a nível profissional. Nos últimos tempos, fui me interessando pela área dos negócios e do empreendedorismo feminino. Fui construindo a minha própria marca na advocacia e redescobrindo-me como profissional. Ganhei clareza no meu propósito actual: empoderar outras mulheres, dando-lhes suporte para desenvolverem o seu negócio com segurança jurídica. Sentir que tenho um impacto positivo na vida das pessoas, contribuindo para que se sintam mais seguras e realizadas, é a minha maior conquista a nível profissional.

Considerando a importância do recente Dia Internacional da Mulher que tem sido um ponto de partida para a reflexão sobre a igualdade de género, como é que a sua jornada, enquanto mulher na área do direito, influenciou a sua visão sobre a importância da igualdade de género no ambiente profissional?
Enquanto mulher na área do Direito, noto que, apesar de, actualmente, a advocacia em Portugal ser uma profissão preenchida maioritariamente por mulheres, o mundo do Direito continua a ser ainda muito marcado por uma mentalidade machista. Ainda existe a crença de que a advocacia é uma profissão para homens, por supostamente exigir uma certa agressividade e uma postura autoritária. É urgente desconstruir este tipo de crenças. Ser advogado/a exige firmeza, saber comunicar com assertividade e manter uma postura credível. Mas importa não confundir assertividade e firmeza com autoritarismo e arrogância que são formas de estar completamente distintas. Autoritarismo, arrogância e agressividade são sinais de falta de formação humana, de bom carácter e de profissionalismo. Em suma, tudo aquilo que a advocacia não precisa. A advocacia – assim como outras profissões ligadas à justiça – precisa sim de ser humanizada, o que só se consegue com empatia, proximidade, sensibilidade, bom-senso e com um conhecimento aprofundado das realidades com as quais lidamos. Esse conhecimento vai muito além dos conceitos jurídicos e das normas. Como dizia um Professor meu da faculdade, “quem só sabe de direito, nem de direito sabe”. Isto para dizer que a competência e aptidão para advogar não depende de características que sejam exclusivas do homem e que estejam menos presentes na mulher, pelo simples facto de ser mulher. Pelo contrário. Por outro lado, também julgo importante não cairmos no extremo oposto de pensar que a empatia, a sensibilidade e o bom-senso, necessários a uma advocacia humanizada, são características exclusivas das mulheres. Ainda que, tendencialmente, se atribua uma maior sensibilidade às mulheres, tais qualidades que não dependem do género, mas sobretudo da educação e dos princípios de cada um, seja homem ou mulher.

À luz das ações realizadas durante este período para consciencializar a sociedade sobre a luta pelos direitos das mulheres, que estratégias ou iniciativas gostaria de ver adotadas, pelos escritórios de advocacia, para promover a igualdade de oportunidades?
Para promover a igualdade de oportunidades nos escritórios de advocacia, há ainda muito a fazer, não apenas pelos próprios escritórios, mas também pela Ordem dos Advogados, pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e pelo poder político. Os advogados, homens e mulheres, não gozam de direitos que são reconhecidos à generalidade dos cidadãos, nomeadamente da dispensa de actividade durante um período de tempo suficientemente alargado, em caso de maternidade ou paternidade. A proteção concedida pela lei não permite compatibilizar o exercício da profissão com a vida familiar. Deveria ser concedida uma verdadeira licença de maternidade/paternidade, suspendendo-se não só as diligências, mas também os prazos judiciais durante um período de, no mínimo, 4 meses. Isto é essencial sobretudo para quem trabalha em prática individual e, por isso, tem dificuldade em ser substituído/a. As mulheres advogadas que desejam constituir família enfrentam obstáculos acrescidos. Basta ter em conta que, em entrevistas de trabalho em certos escritórios de advocacia, ainda se pergunta às advogadas se querem ter filhos, fazendo-se a advertência de que é necessário trabalhar para além do horário de trabalho! Essa questão não é colocada aos homens. As tarefas domésticas e do cuidado com os filhos ainda são vistas por alguns escritórios como algo exclusivo das mulheres advogadas. É necessário quebrar esses padrões, de forma a promover a participação activa dos pais advogados nas respectivas famílias e, assim, a repartição equilibrada das responsabilidades familiares entre homens e mulheres.

Sabemos que um dos objetivos principais do Dia Internacional da Mulher é amplificar as suas vozes e que as mesmas se destaquem nas organizações. Assim, como é que o seu escritório tem apoiado e dado visibilidade às mulheres talentosas e líderes em ascensão?
Desde há alguns meses, tenho-me focado especialmente na assessoria jurídica a empreendedoras com negócios digitais. O meu objectivo é empoderar essas mulheres, dando-lhes suporte jurídico para desenvolverem o seu negócio com confiança e credibilidade. Para mim, apoiar o empreendedorismo feminino é promover os talentos de inúmeras mulheres, contribuindo, através do direito, para transformar esses talentos numa actividade profissional segura e sustentável.

Considerando que a igualdade de género é uma causa que a move, assim como o direito das mulheres, o que é que acha importante fazer em situações de desigualdade de género no geral?
Para se actuar de forma eficaz nessas situações, não é possível fazê-lo isoladamente. É necessário que as estruturas já existentes na sociedade para combater a desigualdade de género funcionem na prática. Não basta que haja, nos municípios, um gabinete de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica, por exemplo, para combater esse flagelo. É necessário que escolas, forças de segurança pública, autarquias, associações culturais e outras organizações civis actuem de forma concertada e cooperem mutuamente na realização de acções de sensibilização adequadas ao meio cultural em questão, de forma a levar as comunidades – homens e mulheres, desde os mais jovens aos mais velhos – a reflectirem sobre estas temáticas e a integrarem a cultura do respeito pelo outro, independentemente do género, na sua vida prática do quotidiano.

À medida que debatemos questões de género e igualdade de oportunidades, como é que vê o papel das mulheres na construção de um ambiente mais inclusivo e diversificado, especialmente em regiões onde o debate sobre essas questões é menos comum?
Apesar de, nas últimas décadas, se ter registado uma evolução legislativa no sentido da não discriminação em razão do género feminino, essa evolução não foi acompanhada por uma mudança de mentalidades coincidente e compatível. Se a discriminação em função do género ainda é transversal aos vários sectores sociais, em meios culturalmente desfavorecidos, essa discriminação é muito mais evidente. É necessário que o debate sobre estas questões não fique “encerrado” apenas nas elites sociais, mas que se democratize na prática e se expanda a meios onde o acesso à cultura e à formação nestas temáticas não chega tão facilmente como aos grandes centros urbanos. O conhecimento é fonte de poder. Por isso, é essencial que as pessoas com mais formação e sensibilidade nestas questões promovam e alarguem o debate a toda a comunidade desses meios, de forma a que todas as mulheres ganhem consciência e confiança relativamente ao seu potencial e importância em sectores profissionais e de participação cívica e social tradicionalmente reservados aos homens.

Por fim, gostaríamos de saber como é que, na sua perspetiva, podemos continuar a avançar na promoção da igualdade de género e na valorização da liderança feminina, não só no meio jurídico, mas em todos os setores da sociedade?
A liderança feminina só poderá ser valorizada em todos os setores da sociedade quando se alcançar um consenso mais alargado na consciência colectiva sobre alguns direitos fundamentais das mulheres. Enquanto houver meios onde os direitos humanos mais básicos – como por exemplo, o direito da mulher a escolher livremente uma profissão (para além das lides domésticas) – ainda não são plenamente aceites, a liderança feminina acaba por ser um assunto reservado às elites sociais, tornando-se uma questão teórica e impossível de ser implementada plenamente. Acredito que a liderança nas organizações deve ser atribuída em função da competência e do mérito, não sendo o género, por si só, que dita a aptidão para tal.

Nota: Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico.