Uma visão sobre a Portaria 255/2023

A Portaria 255/2023, de 7 de agosto, da autoria do Ministério da Habitação que vem substituir a Portaria 701-h/2008, vem adequar as regras de faseamento dos projetos de construção de obras públicas ao DL 78/2022 (CCP), de 7 de novembro.

1650

Pedro Colunas Pereira, Membro do Conselho Executivo da Consulgal

Para compreender o enquadramento desta nova Portaria é necessário recuar às origens da Portaria 701-h/2008 que surgiu por imposição da EU, em substituição da Portaria de 7 de fevereiro de 1972 (Instruções para o cálculo de honorários referentes aos projetos de obras públicas), por violação das regras de livre concorrência que o legislador aproveitou para, como referia nos seus considerandos iniciais:
“Em particular, e subjacente a esta revisão, encontra-se o desígnio do legislador de impor uma maior exigência na elaboração dos projetos, visando uma melhoria na qualidade dos mesmos.”
Apesar da intenção a Portaria 701-h/2008, foi irrelevante, não por demérito da ideia, mas porque o conteúdo não contribuiu para concretizar a sua concretização.
Para tal insucesso contribuiu certamente o CCP que, declarando o seu apego à responsabilização dos vários interessados (“stakeholders”) na execução de obras públicas, sempre atuou no sentido oposto aos desígnios declarados na 701-h/2008.
Apesar da evidente necessidade de instrumentos que contribuam efetivamente para a melhoria da qualidade dos projetos, o governo, os clientes públicos, ou os projetistas, nunca olharam para esta portaria como um instrumento que pudesse contribuir para tal.
No preâmbulo desta nova portaria é referido explicitamente que se pretende detalhar e atualizar alguns dos conceitos referido no DL 78/2022, alterando e clarificando a sua aplicação na execução de contratos de conceção-construção que deixam de ser exceções.
De recordar que na versão anterior do CCP, a contratação de obras públicas em regime de conceção-construção, só era admitido em situações muito especiais, fiscalizadas pelo Tribunal de Contas.
Se devidamente justificado, o procedimento obrigava a que a entidade adjudicante submetesse à concorrência um caderno de encargos integrando um programa preliminar, em substituição do projeto de execução, obrigatório em todos os outros modelos.
Na nova formulação, o DL 78/2022 dá liberdade à entidade adjudicante para decidir promover os seus projetos segundo o modelo que entender mais adequado, sendo que se optar pela conceção-construção, terá de submeter à concorrência um caderno de encargos incluindo um estudo prévio, o que a obriga a contratar uma equipa de projeto, independentemente do modelo de promoção.
Para além da compatibilização com o DL 78/2022, a portaria 255/2023 introduz ainda a possibilidade de incluir os modelos BIM, como peças de projeto.
Como habitual, o governo concedeu três dias às entidades ouvidas (Autoridade Nacional de Emergência e de Proteção Civil, Direção-Geral de Energia e Geologia, Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário, Ordem dos Arquitetos, Ordem dos Engenheiros, Ordem dos Engenheiros Técnicos e a Associação Portuguesa de Projetistas e Consultores), para se pronunciarem sobre o texto.
Tendo em consideração o conteúdo, os autores da portaria tiveram pouco mais do que três dias para a redigir, estranhando-se à partida que tenha sido atribuída ao Ministério da Habitação, uma vez que não é o principal promotor de obras públicas.
Esta portaria é mais um exemplo de sobre-regulamentação, extensíssima, quando por exemplo, o Reino Unido resolve o problema numa página ( Design for Manufacture and Assembly (DfMA) Overlay to the RIBA Plan of Work ), num documento que não é Lei.
Analisando os objetivos declarados, temos:

  1. a) Atualizar e completar os conceitos e definições:
  2. i) Tenta ser exaustiva na identificação e descrição das definições, de assistência técnica e funções de diversos participantes.
  3. ii) São introduzidas definições de diversos cadernos de encargos, categoria de obra, empreiteiro, BIM e serviços afetados.
  4. b) Aperfeiçoar e desenvolver os requisitos mínimos exigidos em cada fase do projeto;
  5. i) Não sendo considerada uma fase do projeto, por ser responsabilidade da entidade adjudicante, no Programa Preliminar foi acrescentada a obrigação de incluir informação sobre a necessidade de obtenção de elementos topográficos, geológicos, hidrológicos, climáticos ou outros elementos ligados aos requisitos ambientais.
  6. ii) No projeto de execução foi acrescentada uma alínea sobre construção industrializada, incompreensível.
  7. c) Completar e atualizar as especificações de projeto definidas para cada tipo de obra;
  8. i) A única atualização digna de referência é a introdução de quatro novas secções no Capítulo II do Anexo I, referentes a “Demolições”, “Outros projetos”, “Estaleiro, segurança e higiene no Trabalho” e “Gestão ambiental e sustentabilidade”.
  9. ii) A Secção XVIII é particularmente relevante por autonomizar a Coordenação de Segurança em Projeto, como um projeto de especialidade, definindo entregáveis muito além do especificado no Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de outubro.
  10. d) Atribuir maior responsabilização aos autores do projeto;
  11. i) Poderá entender-se que a definição de que a categoria da obra será definida pelo dono da obra, podendo ser alterada por proposta escrita do coordenador do projeto, para efeitos da exigência de qualificação dos técnicos referida na Lei 31/2009, pretende contribuir para este objetivo.
  12. e) Ajustar as fases de projeto aos atuais conceitos de gestão na execução das obras;
  13. i) Para além da alteração do peso relativo de cada fase do projeto introduzida no nº1 do artº 12º, o que é positivo, mantendo a limitação de um peso mínimo de 45% para o projeto de execução que não faz sentido, uma vez que todo o trabalho de conceção e dimensionamento foi executado nas fases anteriores.
  14. f) Introduzir maior rigor nas estimativas orçamentais elaboradas nas diferentes fases do projeto;
  15. i) Sem referência.
  16. g) Completar e atualizar as especificações de projeto definidas para cada tipo de obra;
  17. i) Alterações mínimas.
  18. h) Introduzir os modelos paramétricos desenvolvidos com recurso à metodologia BIM na elaboração dos projetos de obra pública.
  19. i) A única referência aparece nº3 do artº 12º, ao referir que “o plano de execução do modelo de informação da construção (BIM), quando não estiverem previstos no caderno de encargos, são serviços que podem ser contratados especificamente”.

Resumindo, o contributo da portaria 255/2023 para a modernização da gestão de projetos de construção de obras públicas resume-se a uma pequena referência ao BIM, absolutamente irrelevante.
Já foram introduzidos modelos BIM em projetos de obras públicas, faltando, para além da vontade dos promotores, enquadrá-los legal e contratualmente, uma vez que estes modelos, são ficheiros digitais, não convertíveis num conjunto de documentos impressos a incluir num contrato.
Muito maior impacto terá a criação do novo projeto de “Estaleiro, segurança e higiene no Trabalho”.
Concluindo, a portaria 255/2023 de 7 de agosto, será tão irrelevante, como a sua antecessora.
Talvez que esta irrelevância derive do fato de ser desnecessária, deixando às entidades adjudicantes liberdade para gerir os seus projetos segundo as suas metodologias.
Sendo esse o caminho preconizado, mantém-se a necessidade de cumprir os requisitos do DL 78/2022 para o que seria suficiente o Capítulo I do Anexo I.
No entanto, para que esse documento contribuísse efetivamente para a modernização a que se propôs, o seu conteúdo deveria refletir as técnicas de gestão de projeto que o governo pretende implementar, o que será necessário esclarecer.
Tudo começa exatamente pelo conceito e definição de projeto de construção, definido pela Portaria 255/2023 como “o conjunto de documentos escritos e desenhados e outros elementos de natureza informativa que definem e caracterizam a conceção funcional, estética e construtiva de uma obra, compreendendo, designadamente, o projeto de arquitetura e projetos de engenharia”, como sempre foi ensinado em Portugal, muito diferente do conceito geral de projeto.
Porque é que em Portugal a definição de projeto de construção é diferente de todos os restantes tipos de projetos?
É um pormenor que dificulta imenso a estruturação do pensamento sobre a organização e comunicação em gestão de projeto.
Falamos do projeto da “Alta Velocidade”, do “Novo Aeroporto”, do “Alqueva”, do “EURO 2004” que correspondem à definição universal de projeto como um conjunto de processos, limitados no tempo, com entradas e saídas, onde o objetivo final é produzir um determinado produto que irá satisfazer um conjunto de necessidades e interesses.
A sua concretização é condicionada por restrições que é necessário equilibrar – requisitos definidos para o produto final, tempo de execução e limitação de recursos – dependendo sobre tudo da gestão dos “stakeholders”.
Não há motivo para que os projetos de construção tenham uma definição diferente, reduzindo-os a um monte de papel, quando estamos a referir-nos apenas a um projeto, ou conjunto de subprojectos, executados com as mesmas ferramentas e metodologias que qualquer outro.
Nesse o caminho, seria necessário incluir aqui o conceito de “Gestão de Projeto”, já existente no DL 78/2022, não para o regular, mas como veículo de congregação todos os processos de desenvolvimento dos estudos necessários para executar um projeto de construção.
Para tal seria fundamental substituir as definições prescritivas por conceitos claros sobre requisitos, prescrições, recursos e faseamento do processo que vai do momento em que o promotor identifica a necessidade de desenvolver o projeto, até à sua concretização, considerando a sempre omnipresente gestão dos “stakeholders”.
Independentemente da designação, há que ser claro quanto aos objetivos de cada fase.
Há que consolidar como conceito fundamental que o faseamento deve otimizar o consumo de recursos, minimizando as perdas resultantes da necessidade de refazer trabalho já executado.
O faseamento acompanha a complexidade do projeto, no entanto existem seis fases básicas:

  1. Definição dos requisitos do promotor: Programa preliminar;
  2. Organização e estudo de alternativas: Programa base;
  3. Conceptualização: Estudo prévio;
  4. Especificação: Projeto base;
  5. Comunicação à obra: Projeto de execução;
  6. Entrega da obra à exploração: Telas finais.

No ponto 4, há que esclarecer o conceito de especificação, que inclui a totalidade dos documentos identificados na definição que a portaria apresenta para “projeto”.
Sendo certo que, decorrente da obrigação de o promotor desenvolver sempre o projeto até à fase de estudo prévio, faltará obrigar a que contrato da equipa projetista inclua a assistência técnica especial, revendo todos os projetos a desenvolver até à fase de telas finais e verificando a sua conformidade com o estudo prévio contratual.
Já no modelo tradicional, se o projeto base incluir a totalidade das especificações, não se compreende a obrigatoriedade de o promotor desenvolver o projeto até à fase de projeto de execução.
Na generalidade dos países desenvolvidos, o modelo mais comum é o de submeter à concorrência um projeto base, deixando ao empreiteiro a responsabilidade de desenvolver o projeto de execução.
Um projeto base desenvolvido de acordo com o conceito anteriormente descrito, define a totalidade do objeto do contrato de empreitada, passando o projeto de execução a ser a sua tradução para quem o vai executar.
Este conceito resolveria ainda a dificuldade de enquadrar os sistemas de construção industrializada no modelo atual, mal resolvido com a incompreensível referência no capítulo dedicado ao projeto de execução, na definição de elementos de construção industrializada.