A Revolução Inacabada

No ano que se celebram os 50 anos do 25 de abril, e no mês que se assinala o Dia Internacional da Mulher, importa refletir sobre a transformação que há anos vem acontecendo de forma sistemática no nosso país.

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Por Sandra Ribeiro, Presidente da Comissão para a Cidadania
e a Igualdade de Género (CIG)

São as mulheres quem mais estuda. Quem menos abandona precocemente o ensino. Quem mais se licencia. Quem mais se torna mestre e obtém doutoramentos. Em Portugal, em cada 100 pessoas com ensino superior completo, cerca de 61 são mulheres.

Até 1974, a taxa de mulheres licenciadas não chegava a dois dígitos. Foi a revolução de abril que nos deu o acesso livre à educação. Antes o ensino superior, e mesmo o equivalente ao secundário, era principalmente destinado aos rapazes de classe alta e média alta. As raparigas muitas vezes nem eram ensinadas a ler, e só as que pertenciam a famílias mais endinheiradas podiam estudar, mas ainda assim, nem todas as profissões podiam ser exercidas no feminino, como a advocacia ou a magistratura. Poder continuar os estudos independentemente do sexo e da capacidade económica foi determinante para originar a transformação radical no papel da mulher em Portugal nos últimos 50 anos. Deu-lhes a possibilidade de serem economicamente independentes. Deu asas, abriu portas, permitiu sonhar com uma vida melhor.

E, efetivamente, muito mudou naquilo que é ser mulher em Portugal nas últimas décadas. Mas nem tudo tem mudado rapidamente. E nem tudo tem mudado.

O aumento das mulheres com nível secundário completo e com licenciatura deveria ter levado a uma alteração radical no mundo laboral. Contudo, tal ainda não aconteceu de forma evidente. Não há ainda uma relação direta e imediata entre o elevado número de mulheres licenciadas e a progressão salarial ou no acesso a cargos de direção. Disso é prova a diferença salarial de 13% a favor dos homens, se estivermos a falar de remuneração base, e de 19%, se estivermos a falar do ganho. As mulheres continuam na sua maioria a empregar-se nos setores do cuidado, educação e saúde, e os homens nos setores das engenharias, tecnologia e informática.  Os primeiros, tradicionalmente menos bem remunerados que os segundos. E em qualquer setor de atividade há mais homens em cargos de direção do que mulheres. Até no ensino superior isso acontece apesar de existirem muitas mais mulheres docentes do que homens.

Por sua vez, a política continua a ser um terreno maioritariamente masculino. Apesar da Lei aprovada em 2006, e revista em 2019, que estabelece que as listas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais são compostas de modo a assegurar a representação mínima de 40% de cada um dos sexos, a evolução tem sido lenta.  Nas últimas eleições legislativas as mulheres eleitas representaram 37% dos assentos no hemiciclo, (85 num total de 230). De notar que a formação inicial do último Governo foi o único que até hoje apresentou paridade absoluta na nomeação de cargos ministeriais, com 50% de mulheres, o que, no entanto, nas várias remodelações que se sucederam deixou de acontecer. E, se olharmos para os dados disponíveis relativamente às eleições autárquicas percebemos que não chegam a 12% as Camaras Municipais que têm mulheres como presidentes.

O que se passa? Por que razão o elevado número de mulheres com mais recursos educativos e académicos não está a ter uma maior repercussão na distribuição do poder económico, social e político na nossa sociedade?

A historiadora e economista norte-americana Claudia Goldin, passou anos a estudar a desigualdade de género no trabalho, e apresentou o ano passado um estudo que lhe mereceu o Prémio Nobel de Economia. O seu trabalho debruçou-se essencialmente sobre a persistente e incorrigível desigualdade salarial entre homens e mulheres. Analisou mais de 200 anos de dados sobre mercado de trabalho nos Estados Unidos, o que lhe permitiu estudar a força de trabalho feminina em séries longas durante várias décadas, em várias fases da vida de milhares de mulheres, identificando os rendimentos salariais desagregados por sexo, ao longo de crises financeiras, mudanças tecnológicas, diferentes níveis de educação, diferentes regiões geográficas e ondas de migração.

A conclusão a que chegou foi que a diferença salarial entre homens e mulheres se acentua em desfavor das mulheres maioritariamente após a maternidade. E que mesmo entre mulheres que exercem a mesma profissão há desigualdade salarial principalmente a partir do nascimento do primeiro filho.

Ou seja, a persistência da disparidade salarial tem por causa principal a exigência de dedicação absoluta ao trabalho, ela alimenta-se do facto de muitas entidades empregadoras continuarem a valorizar quem tem disponibilidade para fazer longas jornadas de trabalho ininterruptamente e quem presta sistematicamente trabalho aos fins de semana, ou não apresenta dificuldade para prestar trabalho suplementar fora do horário normal de trabalho. E, como se sabe, as mulheres continuam a ser ainda hoje as principais cuidadoras dos descendentes e ascendentes, pelo que são maioritariamente a parte da população que apresenta menos disponibilidade para trabalhar fora do horário normal de trabalho nos dias de semana, e ao fim de semana.

Essa é também a razão que afasta tantas mulheres da política ou simplesmente não as atrai. Estar ativamente na vida partidária implica tempo que a maior parte das mulheres não tem. Implica uma dedicação que raramente é compatível para quem tem filhos e filhas pequenas, a menos que se seja homem. Porque a política e os seus meandros e modus operandi não é amiga das famílias, ela está alicerçada em longas discussões partidárias noite dentro, convenções de fins de semana inteiros. E tem de ser assim? Dizem que sim.

Faz sentido por isso falarmos numa revolução inacabada, quer em Portugal quer no resto do mundo. O acesso à educação deu asas, mas a maternidade conjugada com o estereótipo da mulher cuidadora é uma espécie de gaiola. É uma frase terrível. É uma ideia abominável. Mas é absolutamente verdade. Infelizmente é o resultado do desequilíbrio na repartição das tarefas domésticas e de cuidado entre homens e mulheres. Se o mercado de trabalho estivesse convencido que tanto homens como mulheres, tirando o período de gravidez, são igualmente afetados na sua disponibilidade para o trabalho após o nascimento de filhos, seria muito mais fácil diminuir drasticamente as diferenças salarias e as diferenças no acesso a cargos de direção. Mas o mercado de trabalho não tem essa convicção porque a experiência de séculos lhe mostra que não é assim. Elas faltam muito mais do que eles ao trabalho quando têm filhos. Fazem menos trabalho suplementar quando têm filhos. Têm menos disponibilidade para trabalhar para além do período normal de trabalho quando têm filhos. Já eles, as estatísticas até mostram o contrário.

Quanto à política, a lei da paridade tem trazido muitas mais mulheres para a política, mas o desequilíbrio ainda é muito acentuado e a tradição ainda é o que era. E a tradição na política é serem os homens quem tem mais disponibilidade e mais tempo para lhe dedicar.

Conseguiremos fazer a revolução até ao fim e ver homens e mulheres, de livre e espontânea vontade, partilharem as responsabilidades familiares de forma equitativa? Conseguirão as entidades empregadoras apresentar mais soluções de conciliação entre vida profissional e familiar para que todas as pessoas possam progredir nas suas profissões e, simultaneamente, serem pais e mães sem que isso signifique estar a prejudicar uma valência em detrimento de outra? Será que a vida partidária passará um dia a ter horários igualmente conciliáveis para homens e mulheres? Infelizmente, até agora, não fomos capazes de o fazer, prejudicando o bem-estar de muitas famílias, prejudicando as expectativas profissionais e políticas de muitas mulheres. Afastando muitos homens dos seus filhos. Desaproveitando muitos talentos profissionais e políticos.