Quem é Liliana Ferreira e como pode dar a conhecer um pouco mais do seu percurso e carreira profissional até aos dias de hoje?
A Liliana é uma pessoa que nasceu e viveu (ainda vive quando está em Portugal) numa aldeia do concelho de Mação, Chão de Lopes. Tem muito orgulho nas suas origens e é fascinada pela natureza. Praticou futsal nos tempos de juventude; atualmente apenas aprecia o futebol como espectador. Adora viajar e tem um blog designado “Descobrir África” onde mostra um pouco daquilo que são as viagens pelo continente africano, que é deslumbrante.
Comecei a trabalhar desde muito cedo, ainda no ensino secundário trocava as férias de verão por trabalho em part-time. Logo que fiz 18 anos, fui trabalhar para a Alemanha para garantir a minha independência financeira e ganhar experiência de vida – a qual a longo prazo se reflete como um grande ensinamento.
Aquilo que alcancei no meu percurso de vida, deve-se em primeira instância à minha família, aos princípios que me foram transmitidos, à minha natureza de fazer acontecer, fazer com paixão, fazer dando valor acrescentado/ significado, e às dificuldades que se atravessavam pelo caminho. O percurso académico também teve muita relevância, pelo que tive sempre envolvida em inúmeras atividades, como Tuna Feminina, Associação de Estudantes, Concelho Pedagógico, Núcleo do curso e outras atividades desportivas e académicas. Formei-me em Engenharia Informática e das Tecnologias de Informação e no último ano de curso resolvi integrar a equipa da PT, onde em backoffice resolvia processos complexos de clientes insatisfeitos com os diversos serviços, permitindo-me conhecer muito bem o ramo das telecomunicações. Depois de terminar o curso, comecei a trabalhar na Capgemini e foi onde conheci o mundo desafiante da consultoria, seja em contexto tecnológico como estratégico.
Tem um passado repleto de passagens por empresas de enorme renome e prestígio como a Portugal Telecom, a Capgemini e PwC. De que forma é que foi «bebendo» destas experiências para ser uma melhor profissional?
De facto, não me posso queixar do meu passado que foi sempre repleto de boas aprendizagens, pela diversidade de projetos desafiantes que tive oportunidade de abraçar e pelos colegas altamente profissionais com quem tive o privilégio de aprender. Também pela confiança que nalgumas passagens, a gestão de topo (top management) depositou em mim.
Na PT trabalhava com ferramentas que a Capgemini também desenvolvia para os seus clientes e sem me dar conta que já dominava ferramentas que teria que vir a implementar no futuro, um feliz acaso e uma boa alavanca para muitos projetos futuros. Foram os desafios na Capgemini que me permitiram tornar na profissional que sou hoje, mas também é preciso ter muita vontade de fazer mais e melhor a cada dia. Na “Cap.” não havia monotonia de projetos ou setores de negócio (posso dizer que experienciei áreas como banca e seguros, energia e utilites, telecomunicações, setor público, retalho, projetos internacionais de grande relevo ao nível mundial como a Vodafone Global Enterprise, ou rede CTT e também várias áreas tecnológicas (área técnica), das quais me fui afastando propositadamente, caminhando para a área de gestão e estratégia – que é aquela em me sinto “sobre rodas” como se costuma dizer.
Tanto os projetos, como a atividade comercial ou até a formação, foram sempre com timings apertados – recordo que muitas vezes tínhamos de aprender a trabalhar com uma tecnologia na qual não havia na altura outras empresas com experiência em Portugal. A título de exemplo, em 2009 (eu tinha acabado de ser contratada) foi adjudicado um projeto de uma Seguradora de renome e a ferramenta de software selecionada foi Salesforce.com ou SFDC (atualmente, o Customer Relationship Management número 1 no mundo) e nós demos os primeiros passos como parceiros/ implementadores, portanto passamos por desafios que não lembra a ninguém. Era uma descoberta atrás de outra e apesar do desafio fez-me ganhar uma experiência e conhecimento muito enriquecedores sem dúvida.
Como tinha o bichinho cá dentro de voar para Angola fazer projetos que mudassem para melhor a vida das pessoas, surgiu a oportunidade na PwC com um projeto também fantástico e muito aliciante para o setor público a nível nacional, sendo assim o ponto de partida para esta aventura em Angola, naquilo que faço hoje, com muito gosto. E a partir daí tenho tido a sorte (aliada à vontade) de participar em projetos públicos muito importantes a nível nacional – Ministério das Finanças e Ministério da Justiça. O meu foco hoje enquanto profissional é essencialmente no Ministério da Justiça, na área de Identificação Civil, onde existe um grande enfoque na área estratégica de melhoria de serviços, seja a nível funcional/operacional como tecnológico. De notar que em Angola ainda existem municípios onde o registo civil é feito em papel e é muito grande o desafio da transformação digital e formação de quadros em tecnologia.
A empresa para a qual trabalho é sediada em Pequim, sendo que também tive a oportunidade de conhecer e ficar um mês a trabalhar na China, conhecendo outra realidade completamente diferente da nossa em Angola.
Encontra-se há cerca de quatro anos em Angola, e gostava de saber como tem sido viver com esta nova realidade, provocada pela pandemia da Covid-19?
Na nova realidade provocada pela pandemia, há sempre o receio do desconhecido, de como será a evolução da pandemia, ou até o quão preparados estamos para combater o vírus (penso que isto é geral no mundo inteiro). Em Angola existe um conjunto de limitações (ao nível da saúde) que se estendem a quase todo o continente africano e nesse sentido as condições para tratar doentes são mais limitados do que em Portugal e isso faz com que nos questionemos sobre muitas coisas: “E se fico doente e precisar de ventilador, será que há para mim? E se a pandemia se descontrola de tal forma, começa o caos nas ruas e consequente aumento da violência? Aumento da precaridade? Falta de bens essenciais nos supermercados? No entanto até ao momento não temos sentido esse aperto e ainda bem!
Mas o reverso bom da medalha é que o governo de Angola tomou medidas de prevenção muito cedo e isso é de elogiar. Estive em Portugal no final do mês de fevereiro quando regressei no início de março, no aeroporto os funcionários já estavam devidamente preparados para medir a febre, higienização das mãos com álcool gel, entre outros – o que fez com que os casos ainda não se multiplicassem muito. Penso que à data de hoje temos cerca de 80 casos, muitos deles importados. O contágio local ainda tem proporções muito pequenas.
Por outro lado, a título pessoal, estou a aproveitar ao máximo esta oportunidade “covid” para fazer imensas coisas que não consigo fazer habitualmente na “vida de consultoria” – a qual é sempre a correr.
Se pensarmos bem, os profissionais que têm a opção de ficar em casa podem fazer imensas coisas através do mundo digital e não só. Vejo como excelente altura para nos conectarmos ao mundo inteiro através do mundo digital (por exemplo através de webinars gratuitos e outros pagos, aulas online, novas formas de trabalhar, novas ferramentas); aprender coisas novas e a título de exemplo partilho uma coisa engraçada que só aconteceu porque o Covid-19 chegou. Tinha decidido há poucos meses fazer certificação e acreditação em Coaching, uma área que nutro grande interesse e que serve ainda de complemento ao meu trabalho enquanto diretora estratégica, em especial como manter os funcionários motivados face a tantos desafios. A International Coach Federation (ICF) tinha agendado formação presencial aqui em Luanda, com início em março; o que não aconteceu devido à pandemia. Confesso que fiquei frustrada porque era uma oportunidade única de fazer o curso em Angola numa das escolas de coaching mais conceituadas; então comecei a procurar cursos online, empresas, pessoas, e encontrei imensas coisas interessantes, inclusive já fiz certificação online, e outras tantas formações complementares, e tem sido ótimo o que tenho encontrado e participado – que de outra forma não conheceria (e nada destas ferramentas e cursos estariam disponíveis online caso não existisse Covid-19). Houve uma grande libertação de recursos online em todo o mundo e isso facilita bastante processos de formação, comunicação, partilha de ideias, entre outros. Também acredito que é uma boa altura para reflexão, olhar para dentro, valorizar o que temos, aproveitar e dar tempo de qualidade aos entes mais próximos.
De que forma tem o país, as empresas e a sociedade em geral lidado com esta nova realidade? Que impacto é que todo este «novo normal» tem tido a nível económico e social?
Ora bem, o país parou como o Covid-19 sugere – Angola não é diferente dos restantes. O Governo tem medidas muitos restritivas e punições severas para quem infringir a lei. E se a lei diz que não podemos sair de casa, salvo justificado, então não o devemos fazer de todo.
Os mercados essencialmente informais pararam durante cerca de um mês, e isso tem um grande impacto na vida dos cidadãos de baixa renda (que são a maioria). Portanto questões como fome, infelizmente, aumentam a cada dia. Mas também há coisas positivas a retirar desta paragem, por exemplo os costureiros (e cá existe muito o conceito de alfaiate) começaram todo um novo negócio de produção de máscaras de pano africano, e os vendedores de rua (na gíria: zungueiras) também têm um nicho de mercado muito interessante.
Em relação à minha realidade, na empresa tivemos de mudar um pouco na componente de consultoria, estratégia e marketing, e passamos a trabalhar mais remotamente, como tantas outras empresas, sendo que já o fazíamos antes porque temos equipas na China, ou, quando há deslocações a Portugal também o fazemos. Na componente operacional, temos uma boa percentagem de funcionários no setor público, e os serviços nos quais estamos a operar, pararam a 100% durante um mês e nesse aspeto não houve muito a fazer senão parar. Como os nossos projetos são fechados com budget bem definido, conseguimos agilizar dentro das normais dificuldades, ainda assim tivemos de congelar alguns contratos com fornecedores. Entretanto já voltamos ao ativo a 50% com rotatividade de funcionários e estamos a recuperar o tempo de paragem de uma forma relativamente serena. O trabalho remoto continua, que é o meu caso.
Por outro lado, o facto de termos poucos casos em Angola faz com que haja mais confiança em regressar ao ativo e isso também é positivo e afasta aquele dramatismo referente aos contágios locais e aumento exponencialmente de casos que se vive na Europa. Os média também não têm tantas notícias “dramáticas” para mostrar, portanto acho que estamos no bom caminho.
No geral existe um impacto económico tremendo; e não pretendendo estar a ser demasiado superficial no raciocínio, muitas pequenas/ médias empresas pararam de todo, pois os seus quadros estrangeiros voltaram para o seu país e, estando ausente, fisicamente, é sempre mais difícil acompanhar o trabalho principalmente quando o percentual de absentismo (em dias ditos normais) já é significativo.
Outras tantas empresas estão a procurar outras formas de se reinventar (por exemplo o setor da restauração está na sua maioria a fazer entregas ao domicílio e sem custo de transporte para o cliente). Passámos a ter aulas de yoga ou crossfit online e de forma gratuita – o que promove de alguma forma os instrutores.
Em suma, penso que em Angola o contexto não é muito diferente do resto do mundo, com a vantagem de que não temos tantos casos como no resto do mundo.
A desigualdade do género assume-se como um obstáculo à evolução. Durante a sua carreira, alguma vez sentiu ou enfrentou obstáculos pelo simples facto de ser mulher? Se sim, como os ultrapassou?
A desigualdade existe e afeta algumas mulheres; pessoalmente não considero que tenha sido um obstáculo à minha evolução de carreira. Sempre pensei que podia ser presidente ou CEO de uma empresa e continuo com a mesma convicção. No entanto, é também importante distinguir o contexto Português do Angolano.
Em Portugal não me recordo de alguma vez o ter sentido, até porque passei por empresas que fomentam muito a igualdade de género, como a Capgemini e a PwC. Se é um obstáculo? Penso que não, de todo, porque nós, seres humanos, temos uma essência, valores, e no fundo somos todos iguais – foi assim que cresci e é assim que vejo o mundo (sem rótulos, sem cargos, de igual para igual) – isto nem sempre é bom, mas no geral permite-nos não ir com medo de falar ou olhar de frente para uma chefia, permite-nos perguntar se temos dúvidas, de errar para a seguir aprender. O facto de ser uma pessoa lutadora (sou “empreendedora” desde pequena quando vendia tapetes na mercearia dos meus avós na aldeia), com opinião fundamentada, com espírito de “estamos cá para arranjar soluções” e nesse sentido penso que mesmo que existam obstáculos ou crenças sobre a desigualdade de género são totalmente ultrapassáveis.
Já no contexto de Angola, este é um país ainda com uma mentalidade conservadora, em que não há muitas mulheres em posição de chefia/liderança, no entanto já se vão vendo algumas, o que é ótimo. Habitualmente o homem trabalha e a mulher toma conta dos filhos e da casa. Já tive algumas peripécias engraçadas, de por exemplo em reuniões com clientes, os meus colegas homens eram todos chamados de engenheiros e eu não era chamada de engenheira (porque uma mulher normalmente não é engenheira, é de gestão, ou vista como secretária). Situações caricatas com pouca relevância, dado que sei o lugar que ocupo na empresa para a qual trabalho e tenho a confiança e apoio dos meus colegas e chefia. E no fundo se pensarmos que independentemente de sermos mulheres ou homens, somos seres humanos que pensam e que erram, as coisas ficam sempre mais fáceis!
O que podemos continuar a esperar da sua parte para o futuro?
Continuar a minha caminhada de vida, onde se inclui o trabalho com muita dedicação, devoção, brio profissional, servir deixando sempre algo melhor do que o que estava, fazendo sempre mais e melhor do que o fiz hoje. Viver o presente, agradecendo por cada dia!
E no fundo retirar do Covid-19 a aprendizagem de tomarmos consciência da nossa pequenez (um vírus invisível faz parar o mundo). Gostaria de deixar uma mensagem de reflexão que é: o Covid-19 está a dar-nos a oportunidade de simplesmente parar, olhar à nossa volta, ver que podemos ter muito ou pouco dinheiro no bolso mas isso não faz com que o vírus diminua a sua intensidade, que somos todos iguais e frágeis perante as adversidades; oportunidade de olhar para dentro por exemplo através da meditação, de perceber a turbulência e correria que vivíamos nos dias normais, que não tínhamos tempo, que só nos focávamos no trabalho. Deixar de olhar para o Covid-19 com um problema e ver lado positivo e o leque de oportunidades a vários níveis.