Início Atualidade UM TERÇO DAS PESSOAS QUE FAZEM TRATAMENTOS DE FERTILIDADE NÃO ENGRAVIDAM. APOIAR ESTES PACIENTES É UM IMPERATIVO ÉTICO

UM TERÇO DAS PESSOAS QUE FAZEM TRATAMENTOS DE FERTILIDADE NÃO ENGRAVIDAM. APOIAR ESTES PACIENTES É UM IMPERATIVO ÉTICO

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UM TERÇO DAS PESSOAS QUE FAZEM TRATAMENTOS DE FERTILIDADE NÃO ENGRAVIDAM. APOIAR ESTES PACIENTES É UM IMPERATIVO ÉTICO

Cerca de um terço das pessoas que realizam tratamentos de fertilidade chegam ao fim do processo sem engravidar. Após um período usualmente longo e exigente em que todos os esforços se centram no alcance da gravidez, a maior parte dos pacientes não estão preparados para lidar com o facto de que não terão filhos biológicos. Com o término dos tratamentos perde-se também o estatuto de paciente, o que em muitos casos limita o acesso a apoio psicossocial. Mesmo quando este está disponível, muitos pacientes acham demasiado penoso terem de regressar à clínica ou lugar onde sofreram consecutivas perdas. Alguns pacientes poderão tentar aceder a serviços primários de saúde mental devido a sintomatologia depressiva e/ou de luto, no entanto estes serviços carecem de know-how específico à psicologia da reprodução.
Consequentemente, a maior parte dos pacientes são deixados à sua própria mercê para lidar com o que poderá ser a maior perda da sua vida. De facto, múltiplos estudos têm vindo a mostrar que o término de tratamentos de fertilidade malsucedidos desencadeia um processo de luto intenso e prolongado, caracterizado por sentimentos de perda, tristeza profunda e isolamento. Esta vivência reflete-se em piores níveis de saúde mental e bem-estar, em comparação aos pacientes que engravidam com o tratamento. Alguns estudos mostram que isto também é verdade para pacientes com infertilidade secundária, ou seja, que têm filhos, mas não tantos quanto desejam.
Nos últimos anos várias organizações e sociedades científicas de medicina da reprodução têm vindo a alertar para a responsabilidade das clínicas continuarem a apoiar os pacientes após o tratamento, seja este bem ou malsucedido. Esta mudança de paradigma é visível nas orientações sobre boas práticas clínicas ou códigos de conduta, publicadas por exemplo, pela Sociedade Europeia de Medicina da Reprodução e Embriologia (ESHRE) e pela Autoridade para a Fertilização Humana e Embriologia do Reino Unido (HFEA).
Infelizmente, a prática clínica atual está aquém daquilo que é recomendado. Esta realidade é patente a vários níveis. Primeiro, na falta de serviços de apoio aos pacientes. De facto, a maior parte do apoio psicossocial disponível é dirigido a apoiar os pacientes apenas enquanto estão a tentar ser pais. Segundo, na falta de investigação científica focada neste período específico. Note-se que uma revisão sistemática recente identificou 39 intervenções psicossociais na área da infertilidade, nenhuma das quais dirigida ao período pós tratamento. Terceiro, na necessidade que os pacientes sentem de se organizarem para desenvolver medidas de ajuda entre pares (grupos de apoio, redes sociais, etc.). Finalmente, num auto-reconhecimento por parte das entidades de saúde relevantes (por exemplo, a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução) de que esta lacuna é real.
Este artigo de opinão chama a atenção para a necessidade dos atores da medicina de reprodução (clínicas, sociedades ciênticas, associações de pacientes, cientistas) se mobilizarem para desenvolver e avaliar medidas de apoio psicossocial após o insucesso dos tratamentos. Numa área da medicina em que os avanços médicos são dados a passos de gigante e que constantemente desafia barreiras éticas e sociais, negligenciar a experiência humana dos que a esta recorrem não é eticamente defensável.
Portugal pode orgulhar-se de ser pioneiro nesta área. A associação de pacientes Apfertilidade, em parceria com a Universidade de Cardiff e a Fertility Network UK, desenvolveram e estão a avaliar a MyJourney. A MyJourney é o primeiro programa mundial de autoajuda, interativo e gratuito, destinado a promover a adaptação psicológica das pessoas que não concretizaram o seu desejo de ter filhos. Está disponível em myjourney.pt.