O Grupo de Investigação do Cancro Digestivo (GICD) foi criado em 1988, tendo nos dias de hoje como principal desiderato alertar a população em geral dos perigos desta doença – uma das principais causas de mortalidade em Portugal. O que tem sido concretizado neste âmbito ao longo dos anos?
Os tumores malignos do aparelho digestivo correspondem, efetivamente, a uma parcela muito significativa da patologia oncológica a nível global quer em termos de incidência quer em termos de mortalidade. Falamos, por exemplo, do cancro coloretal que ocupa o segundo lugar em termos de incidência e o terceiro lugar a nível mundial em termos de mortes associadas ao cancro. Assim, um dos objetivos do GICD é alertar a população para estes dados e apelar, por um lado para a participação nos programas de rastreio, quando disponíveis e, por outro, para recorrerem ao seu médico assistente quando identificam qualquer sinal, ou sintoma, menos habitual como seja a alteração dos hábitos intestinais, a perda de sangue nas fezes (mesmo se esporádica), ou os chamados sintomas constitucionais que incluem perda de apetite e/ou de peso ou diminuição das forças. Uma intervenção de fundo seria a implementação de hábitos de vida saudáveis junto dos mais jovens, de forma a sensibilizá-los para o risco do cancro em geral.
A 30 de setembro assinala-se o dia mundial do cancro digestivo e, com exceção de 2020 por razões óbvias, organizamos um evento em locais selecionados, mas sempre diferentes, de forma a chamar a atenção do público para o problema.
O GICD tem sido pioneiro em vários estudos de investigação no que a esta doença diz respeito, impulsionando para uma melhor prevenção da mesma. Quão importante é apostar fortemente nesta área e assim desenvolver melhores conhecimentos da mesma? Que trabalhos estão a ser realizados atualmente?
Um aspeto fundamental da evolução em Oncologia é a investigação, nomeadamente clínica e, por isso, consideramos muito importante para as instituições, e para os doentes, a participação em ensaios clínicos. No que concerne aos estudos epidemiológicos não temos, de todo, os meios para os concretizar. Os estudos no contexto da prevenção exigem outro tipo de desenhos, com base populacional muito mais alargada e com um seguimento que pode exigir muitos anos para permitir concluir do benefício, ou não, das medidas em avaliação. O GICD vocaciona-se para os estudos no âmbito da terapêutica e, também, na caracterização da realidade portuguesa. No primeiro objetivo inclui-se um ensaio em parceria com a sociedade homónima espanhola, e no segundo o levantamento da realidade portuguesa no âmbito do cancro do pâncreas e que, apesar da pequena dimensão do nosso país, pode assumir várias faces nas diferentes instituições. Ou seja, cada uma delas confronta-se com diferentes obstáculos, procedimentos, circuitos e meios disponíveis.
Segundo a estimativa da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, o cancro digestivo tem registado um aumento significativo do número de casos nos últimos anos, mas também é um facto que há cada vez mais meios para lutar contra a doença, sobretudo quando diagnosticada em fase precoce. Assim, quais são os principais sintomas associados e que hábitos devem ser adotados para melhor evitar o seu aparecimento?
Os sintomas são muito variáveis de acordo com a localização tumoral. No caso do cancro gástrico, por exemplo, podemos falar em dor ou desconforto do estomago, enfartamento após as refeições, mesmo se ligeiras, vómitos e perda de apetite e/ou do peso e anemia, muitas vezes por perdas de sangue arrastadas de que o doente não se apercebe. Entre nós não existe qualquer programa de rastreio do cancro gástrico e, portanto, caberá ao médico assistente, perante as queixas de cada um dos seus doentes, estar atento à possibilidade deste diagnóstico.
Por outro lado, no cancro coloretal os sintomas mais frequentes são a alteração do funcionamento intestinal, quer no sentido da diarreia quer da obstipação, a perda de sangue nas fezes, a perda de peso não justificada (por exemplo no contexto de uma dieta com esse objetivo) e as dores abdominais. O problema é que, em muitos casos, o doente está assintomático até muito tarde na evolução da doença e, por isso, o diagnóstico é feito num estadio mais avançado, quando as probabilidades de cura se vão reduzindo progressivamente. E isto é verdade mesmo nos doentes mais jovens (com menos de 50 anos, habitualmente excluídos dos programas de rastreio implementados na maioria dos países), o que leva a um diagnóstico mais tardio, com maior intervalo de tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico da doença. Por isso surgem mais trabalhos defendendo o início do rastreio aos 45 anos nesta patologia.
A prevenção assenta na adoção de um estilo de vida saudável, que inclui a alimentação pobre em gorduras mas rica em fibras, o exercício físico, a evicção do tabaco e do álcool e a remoção de pólipos quando estes são identificados no decurso de exames de rastreio ou vigilância.
O Dia Mundial de Luta contra o Cancro comemora-se a 4 de fevereiro, numa iniciativa da União Internacional de Controlo do Cancro, uma rede de cooperação internacional composta por diferentes membros e organizações, sendo este um evento global que une a população em torno da luta contra a doença, através da sensibilização e da educação. Como nos pode descrever a prevenção que é realizada atualmente em Portugal?
Não creio que a prevenção esteja efetivamente a ser realizada em Portugal, pelo menos de uma forma coordenada. Para além das medidas que vieram limitar a disponibilização de alguns alimentos em contexto escolar, e que se focam, sobretudo, no consumo de açúcar, não há restrições, por exemplo no consumo de gorduras e na forma como as refeições escolares são confecionadas, ou no peso das frutas e legumes em cada refeição. Na verdade, as medidas implementadas têm mais como o objetivo a redução da obesidade, perfeitamente justificado e meritório, mas insuficientes no que respeita ao cancro. Existem diretivas da DGS em várias áreas mas o trabalho tem que ser feito a jusante, ou seja, junto de faixas etárias bem mais jovens através da introdução de uma educação para a saúde e que engloba vários outros parâmetros. Creio que o consumo de álcool entre os mais jovens e o crescente número de fumadores apesar das limitações legais, quiçá pouco fiscalizadas, constituem fatores de risco para o desenvolvimento de vários tipos de cancro que, por ser uma patologia muitas vezes associada à idade, e são esquecidos pelos mais jovens.
Estima-se que o número de casos de cancro e morte relacionadas a nível mundial venha a duplicar nos próximos 20 ou 40 anos, especialmente nos países em desenvolvimento, os menos equipados para lidar com o impacto social e económico da doença. Neste sentido, no domínio da oncologia, que lacunas existem ainda por preencher no nosso país?
Não creio que sejam lacunas do nosso país: trata-se de lacunas a nível global. Por um lado, existem cancros que, pela sua pouca expressão em termos numéricos, tornam difícil realizar ensaios clínicos que permitam identificar as terapêuticas mais adequadas e representam uma necessidade imperiosa quer para o doente quer para o médico, cujo objetivo é tratar da melhor forma o seu doente, idealmente conduzindo à sua cura. Por outro lado, há cancros mais difíceis de tratar (refiro-me, por exemplo, ao cancro do pâncreas), cujos resultados da investigação clínica estão longe de serem satisfatórios e as opções terapêuticas escasseiam, apesar das múltiplas linhas de investigação em curso. É por isso que se estima que, em cerca de uma década, o cancro do pâncreas passe da quarta para segunda causa de morte por cancro a nível mundial. Creio que a investigação dirigida à identificação de alvos terapêuticos dentro de cada tumor, uma espécie de pequenos orifícios de fechadura onde poderíamos atuar com uma chave adequada, ou seja, a droga certa para esse alvo poderá ser o caminho: obtendo maior eficácia à custa de menor toxicidade.
Atendendo ao facto de estarmos a atravessar uma situação de pandemia global provocada pelo novo coronavírus, muito do tempo despendido por parte dos profissionais de saúde tem sido dedicado exclusivamente a esta problemática. Assim, alguns tratamentos para controlar outras doenças e/ou problemas de saúde, foram suspensos. Como se encontram as respostas necessárias por parte destes serviços para com os tratamentos contra o cancro – tratamentos esses que requerem continuidade?
Manter os tratamentos dos doentes com cancro, de forma a minimizar o impacto da pandemia no prognóstico de cada doente, tem sido o objetivo de todos os serviços de oncologia do país. Para isso, estabeleceram-se circuitos e procedimentos que visam criar um ambiente seguro e reduzir, na medida do possível, o risco de infeção destes doentes mantendo as terapêuticas planeadas. Preocupa-nos, no entanto, a redução do número de doentes discutidos nas reuniões multidisciplinares e, consequentemente, de novas consultas porque isto representa uma diminuição dos diagnósticos, não porque a doença reduziu a incidência, mas porque os doentes não têm acesso, ou têm medo de recorrer, ao seu médico assistente. Por outo lado, os exames endoscópicos foram interrompidos durante algum tempo, cerca de três meses, e o número de exames agendados agora é menor devido aos requisitos adicionais de higienização dos espaços, o que não permite recuperar todos os exames que ficaram por realizar.
Quais são os procedimentos que considera serem relevantes em tempos de pandemia, a todos os que procuram por exemplo participar em rastreios?
O programa que temos implementado para rastreio do cancro do cólon passa pela pesquisa de sangue oculto nas fezes, que não tem exigências particulares no contexto da pandemia e que exigem, apenas, que os pedidos sejam feitos pelos respetivos médicos assistentes. Quanto às colonoscopias, os doentes realizam previamente um teste ao SARS-CoV2, pedido pelo serviço que irá realizar o exame, e o espaço é higienizado cumprindo todas as normas de segurança pelo que o podemos considerar um procedimento seguro.
Que mensagem gostaria de deixar aos nossos leitores sobre a forma de sensibilização e prevenção do cancro?
Um estilo de vida saudável é a base da prevenção de muitas doenças: do cancro também! O cancro atinge, cada vez mais, populações de todos os grupos etários e, mesmo que não tenha antecedentes familiares de cancro, esteja atento aos sinais de alerta, amplamente divulgados pela Liga Portuguesa Contra o Cancro, por exemplo. Não desvalorize ou interprete de ânimo leve qualquer queixa e, na dúvida em relação a qualquer sintoma, fale com o seu médico e coloque as suas dúvidas. O diagnóstico, e o prognóstico da sua doença, também está nas suas mãos.